Há mais de uma década, todas as maiores cidades do mundo passaram a
ser equipadas com câmeras de vigilância. A justificativa dada pelos
governos sempre foi clara: garantir a segurança. A maior parte das
pessoas não questionou e acabou por aceitar essa nova realidade,
sutilmente imposta pelas autoridades locais. O senso comum diz "porquê
vou me preocupar com câmeras? Não tenho nada a esconder, sou um cidadão
de bem, e além do mais, essas câmeras são importantes para que sejam
identificados atos criminosos" . A identificação dos criminosos
certamente é um dos objetivos da implantação das câmeras, mas há um
outro ponto que não é exatamente o controle da violência, mas um tipo
muito peculiar de controle social. É claro que precisamos ainda definir
o que são "os criminosos". É comum governos e corporações considerarem
criminosos aqueles que lutam contra injustiças praticadas por essas
instituições. Um exemplo simples, adaptado à realidade de Joinville,
foi a perseguição realizada contra integrantes do Movimento Passe Livre
em 2005 [1]. Seguranças contratados pelas empresas de transporte
coletivo da cidade seguiram e ameaçaram através de "terrorismo
psicológico" militantes do movimento, que estavam participando de
protestos contra os aumentos da tarifa de ônibus. Com as câmeras de
vigilância, esse tipo de controle social torna-se potencialmente ainda
mais efetivo.
Analogia com a ficção de George Orwell
Na
vigilância pública realizada pelos governos e polícias, todas as
imagens ficam gravadas e restritas a um número limitado de pessoas, que
trabalham nas centrais de monitoramento.
Esse é um tipo de controle realizado pelas autoridades com objetivos de manter a "ordem" e a "harmonia".
Pelo
caráter de imposição e controle vertical, pode ser feito uma analogia
entre esse tipo de vigilância e o que ocorre na ficção de George
Orwell, 1984, escrita no ano de 1948.
Em 1984, todas as ruas e casas
são equipadas com tele-telas, dispositivos que filmam e reproduzem a
imagem do Grande Irmão (Big Brother), com seu olhar severo de eterno
vigilante. O Grande Irmão é uma figura interessante, pois apesar de ser
visto pelas tele-telas, ninguém nunca o viu fisicamente. Trata-se de
uma figura tão mistificada e poderosa, que aparentemente não possui
existência física.
O objetivo das tele-telas é registrar atos que
possam representar dissidências ao Estado/Partido. A ênfase nesse caso
é na disciplina, onde todas as pessoas devem obediencia total ao
estado, sendo proibida qualquer forma de pensamento livre, criatividade
ou mesmo expressão de emoções. A única expressão permitida é a
declaração de dever ao Partido.
Todavia, seria exagerado e
paranóico afirmar que a ficção de Orwell está se profetizando. O
controle por meio do Estado descrito por Orwell, representa um Poder
que seria melhor associado com aquilo que Michel Foucault chamou de
Sociedade Disciplinar, a partir de seus estudos das chamadas
instituições disciplinares clássicas: clínica/hospício, escola e
prisões. Essa Sociedade Disciplinar foi a forma como o Poder se
desenvolveu no século XX, através dos regimes totalitários, guiados por
nomes como Stalin, Hitler, Mussolini, Franco ou ainda, Getúlio Vargas.
Da Sociedade Disciplinar à Sociedade de Controle
Com
o advento dos meios de comunicação em massa, dos regimes de democracia
representativa e dos setores de prestação de serviços, o Poder veio a
adquirir formas mais sofisticadas de ação, menos baseado na repressão
explícita, dando ênfase às liberdades de consumo e a incorporação de
símbolos, onde a publicidade utiliza princípios de semiótica para
vender cada vez mais. Gilles Deleuze defende que a concretização da
Sociedade Disciplinar é a Sociedade de Controle (que normalmente vem
sendo chamada de Sociedade de Rede ou da Informação). Trata-se do
capital assumindo a forma rizomática, interiorizada, onde o controle
passa a ser mais horizontal do que vertical, mesmo que isso pareça
contraditório.
Depois do capital ter se apropriado das artes,
dos meios de comunicação e ter se adentrado cada vez mais nos campos
subjetivos, agora ele se funde nos processos criativos, no
inconsciente, nos desejos humanos mais íntimos. Diminui-se a ação do
Poder, sob a forma da Disciplina, na forma agressiva e impositora. Na
sociedade disciplinar existia a censura, a confissão, a perda da
identidade. Agora você pode ser quem quiser, ser comunista e usar uma
camiseta do MST, ter um site na internet criticando qualquer governo de
qualquer país (com excessão da China), que provavelmente você não será
exilado por isso. Essas liberdades são sempre apenas liberdades de
consumo, onde tudo é reduzido ao título de mercadoria, mesmo a
rebeldia. Desse modo, poderíamos concluir que se faz cada vez menos
necessária uma imposição de disciplina de um governo sob a população,
pois as próprias pessoas estão começando a realizar esse (auto)controle
[2] , por exemplo, através de formas voluntárias de vigilância e
exposição de suas vidas.
O cenário Web
O
sucesso das redes de relacionamento social na web podem ser indícios de
que Deleuze tenha alguma razão. Luli Radfahrer [3] afirma que o
micro-blog twitter é uma espécie de Big Brother voluntário, onde as
pessoas dão detalhes sobre tudo o que estão fazendo, sem que sejam
obrigadas a isso. De fato, parece que estamos vivendo um tempo da
efetivação dos Big Brothers voluntários, sendo o sucesso de audiência
do programa de televisão de mesmo nome o maior exemplo de como a
vigilância é um fator crucial em nossa atual sociedade.
A
nova tecnologia do Google, o Street View, leva essa vigilância a um
nível ainda mais alto. O Google Street View permite que se navegue
pelas ruas de uma cidade em três dimensões, com 360 graus na horizontal
e 270 graus na vertical. Um carro do Google transita pelas ruas das
cidades, tirando fotos, que ficam disponíveis a qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo. É a situação dos big brother voluntários, onde todos vigiam todos, levada ao nível das imagens.
Alguns sites como a comunidade GSTV Brasil
foram criados para disponibilizar imagens de pessoas em momentos
frustrantes, captadas pelo Street View. Houve também um caso polêmico
de divórcio causado através do Street View: um homem havia avisado sua
mulher que sairia de férias e navegando pela ferramenta ela descobriu
que o carro de seu marido estava em frente à casa de sua amante, na
mesma cidade.Após esses casos, o Google passou a borrar os rostos das
pessoas e placas de carros nas imagens, alegando que dessa forma
protegeria a privacidade das pessoas.
O Google vem seguindo
há alguns anos a prática de não apagar nenhuma informação de seus
servidores e é bem provável que o mesmo está sendo aplicado ao Street
View. Isso significa que seus servidores tem o potencial de armazenar
um histórico com imagens de tudo o que ocorre nas maiores cidades do
mundo.
A implantação de câmeras pelas cidades é algo que ameaça
não apenas a privacidade, mas o próprio livre-arbítrio. A partir do
momento que sabemos que existem câmeras mapeando nossos movimentos,
agiremos de forma diferente, guiados pelo medo de sermos vistos sendo
nós mesmos. Temo que o produto a longo prazo disso seja algo como
descrito em Homem Duplo, conto cyberpunk de Philip K. Dick, onde o
personagem principal se vê numa situação onde trabalha como vigilante,
controlando todos os seus amigos e ao mesmo tempo vigiando sua própria
vida.
Todos esse fatores, a princípio, podem nos levar a adotar
uma visão pessimista. Mas há uma série de iniciativas baseadas em
princípios vindos da cultura hacker que tem lutado por políticas de
privacidade na internet. A Privacy International, por exemplo, foi quem conseguiu que o Google borrasse o rosto das pessoas no Street View. É
importante que questinemos a implantação de novas tecnologias, pois
elas nunca são neutras, tendo impactos diversos sob todos os espectros
da vida humana.
[1] Mais informações sobre o caso em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/11/335517.shtml
[2] Mais sobre poder rizomático, em "Neuromagma e Multidão",
por Peter Pal Perbart. Disponível em
http://www.rizoma.net/interna.php?id=140&secao=neuropolitica
[3] Entrevista com Luli Radfahrer, disponível em http://www.luli.com.br/media/0828_groisman.mp3