O absurdo e a revolta em Albert Camus

Deus está morto, disse Nietzsche. Ele havia suas razões para fazer tal declaração.
O pensamento científico tratou de arrancar pela raiz a pesada árvore da teologia, espantou os fantasmas da metafísica e declarou o império dos sentidos. Observação, análise, experimento. Com Galileu não somos mais o centro do universo, com Darwin não somos mais que um animal como tantos outros, um amontoado de células que se ajustam por um longo processo de evolução e adaptação. Em suma: já não precisamos recorrer aos deuses, temos agora uma narrativa perfeitamente natural e podemos verificá-la com nossos sentidos.

A morte de Deus não nos leva apenas a uma crise narrativa, em que o mito transcendental perde seu protagonismo, ela nos apresenta também uma violenta crise de valores. Se não há mais deuses, quem nos indicará a diferença entre o bem o mal? De um lado, a possibilidade de reescrever a história, de criar valores que afirmem todo o potencial humano. Mas o risco aqui é iminente: o aparecimento do niilismo como ausência de valores e de sentido, o reino do absurdo. A história do século XX nos fornece um trágico panorama de onde esta ausência de valores pode nos levar: campos de concentração, gulags, bombas atômicas; já no seculo XXI, nos perguntamos se encontraremos a auto-aniquilação através de uma catástrofe climática ou bélica.

A partir de uma analogia com o mito grego de Sísifo, Albert Camus considera a condição humana como condenação a uma vida absurda:

“Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança”.

A vida, quando vista como jornada inútil e sem sentido, nos leva a um desfecho trágico: a morte ou o suicídio. É esta perspectiva que encontramos em “O estrangeiro” de Camus: um homem guiado por circunstâncias casuais, unicamente pelo prazer ou desprazer dos sentidos, desprovido de qualquer valor. Matar ou morrer se torna uma questão irrelevante. Camus não foi o único a explorar as facetas de uma vida sem sentido: Em Kafka, o absurdo permeia as relações familiares (Metamorfose), as leis e os tribunais (O processo) e as penitenciárias (Na Colônia Penal). Em Beckett (Esperando Godot), o absurdo está na inútil espera por alguém que nunca chega. Com George Orwell (1984), o absurdo totalitário é capaz de desfigurar os eventos históricos, a linguagem e a matemática: 2+2=5. A particularidade em Camus foi de ter-nos deixado dois belos ensaios onde ele desenvolve uma filosofia crítica de sua obra literária, em “O Mito de Sísifo” e “O homem revoltado”.

Se a saída existêncialista em Sartre é de responsabilizarmo-nos pela criação de nossos próprios valores, em Camus encontramos um principio primordial como resposta ao absurdo: a revolta. Resta então revoltarmo-nos contra nossa condenação, criando significado através de uma arte que reflete e combate a absurda condição da existência. Esta revolta implica na rejeição do esvaziamento de todos os valores. Se o niilismo contemporâneo encontra espaço na desfiguração da condição pós-moderna, onde a ausência de valores passa a ser preenchida pela cínica casualidade dos mercados, a revolta como valor último nos leva a afirmar princípios que nos são tão caros: a conjunção entre liberdade e justiça.

Nota: Sobre Camus, Michel Onfray nos diz: “Ele criticou fortemente o capitalismo, o liberalismo, o mercado como produtor das leis, a desumanização de toda política que, de esquerda ou de direita, não continha a preocupação conjunta da justiça e da liberdade. A justiça sem a liberdade, é a ditadura; a liberdade sem a justiça, é a lei do mais forte: ele queria a liberdade e a justiça”.

O fantástico mundo de Amanita Muscaria

Amanita muscaria na bicicletaNos meses em que vivi na Finlândia, tive a oportunidade de colher alguns cogumelos Amanita Muscaria, aqueles famosos de chapéu vermelho com manchas brancas (belíssimos cogumelos, por sinal). Eu já havia ouvido falar dos efeitos alucinógenos deste cogumelo e também que ele poderia ser muito perigoso, então perguntei para alguns finlandeses o que eles achavam e eles me aconselharam a ficar longe destes fungos, pois certamente morreria se os experimentasse. De certa forma, isso me interessou mais ainda.

Sol e amanita muscaria Depois de algumas pesquisas, descobri que o Amanita Muscaria é na verdade fruto de grande mistificação, pois mesmo em alguns dicionários de cogumelos ele é tratado como sendo mortalmente tóxico, mas em publicações científicas importantes, pesquisadores alegam que se trata de um cogumelo levemente e não mortalmente tóxico, e que não há fontes precisas de que o cogumelo tenha causado qualquer morte por intoxicação na história. Além disso, um dos artigos [1] fornece um método seguro para desintoxicação do cogumelo, tornando-o apropriado para ser apreciado na culinária – posso garantir que ele é delicioso com azeite de oliva (a Bruna escreveu em seu blog sobre a ótima experiência culinária que tivemos com ele). O método de desintoxicação consiste simplesmente em ferver o cogumelo na água por tempo suficiente para diluir o ácido ibotênico e o muscimol (os componentes tóxicos e psicoativos) e depois descartar esta água. Existe sim um cogumelo do gênero Amanita (Amanita Alphaloide), que é mortalmente tóxico: sua cor é branco-esverdeada (jamais seria confundido com o vermelho Amanita Muscaria) e essa espécie sozinha é a maior causadora de mortes por intoxicação de cogumelos no mundo.

Mas mesmo quando o princípio ativo do Amanita Muscaria é deliberadamente encarado (para os curiosos que se arriscam a cruzar as fronteiras da mente), com o devido preparo de desidratação do cogumelo, o que se tem é uma experiência no máximo imprevisível: com um ou dois cogumelos, é possível que não haja qualquer efeito, mas com um pouco mais pode se ter uma média ou avassaladora experiência alucinógena. Isso ocorre pois a dosagem dessa espécie é muito difícil de ser controlada, uma vez que cada cogumelo pode ter diferentes concentrações dos princípios ativos de acordo com a estação, a qualidade do solo, o tempo de exposição ao sol e a temperatura ambiente.

O uso alucinógeno deste cogumelo em rituais religiosos foi de grande importância para antigos povos do norte, tendo sido utilizado por xamans da Sibéria há milhares de anos. Há relatos de que os siberianos e o povo Sami na Finlândia possuem uma prática muito curiosa de consumir o princípio ativo do Amanita Muscaria através da urina das renas por eles criadas, já que o organismo das renas converte toda a substância nociva ao corpo humano (ácido ibotênico) na substância responsável pelas alucinações (muscimol), tornando o cogumelo ainda mais potente para as experiências xamânicas.

Super Mario amanita As referências ao Amanita Muscaria são diversas na cultura popular, sejam nos desenhos e histórias infantis como Alice no País das Maravilhas, Branca de Neve e os Sete Anões, Smurphs, ou jogos de videogame como a série Super Mario Bros. Mas talvez a faceta mais peculiar do Amanita Muscaria sejam as inúmeras hipóteses que conectam este cogumelo ao simbolismo do natal (ou do solstício de inverno), e ainda mais polêmicas, as teses de alguns autores como Robert Gordon Wasson e John Allegro que identificam o uso deste cogumelo como elemento essencial na origem de tradições religiosas como o hinduísmo e o cristianismo. Gostaria de apresentar aqui algumas dessas hipóteses e teorias, que apesar de terem um teor especulativo, são baseadas em estudos sérios. Mas lembro que se tratam de teorias, e que não está ao meu alcance dizer se são verdadeiras ou falsas, mas nem por isso deixam de ser muito interessantes no contexto das histórias alternativas da religião.

O natal psicoativo dos nórdicos

Talvez nem todas as pessoas se perguntam sobre as causas históricas do simbolismo de natal. Sem dúvida o ponto mais óbvio sobre a origem destes símbolos é que eles pertencem ao contexto das terras frias do norte (em especial Rússia e Escandinávia), onde antes de ter sido convertido em festividade cristã, o natal era celebrado como o solstício de inverno, que ocorre normalmente no dia 21 de dezembro. Pinheiros são as únicas árvores que se mantém verdes em meio à neve do rígido inverno da Rússia e da Escandinávia e provavelmente por esse motivo foram escolhidos como as árvores de natal. Ironicamente, em terras onde não há neve e em que a mitologia natalina está totalmente afastada da realidade local (como no Brasil), os pinheiros de natal são normalmente decorados com pedaços de algodão para que pareçam estarem expostos à neve. A troca de presentes e a figura de Papai Noel são normalmente associados ao russo São Nicolau, apesar do antropólogo Lévi-Strauss [2] ter encontrado um grande número de outras referências pagãs para este personagem em diferentes sociedades tribais. Mas quanto a deixar presentes debaixo dos pinheiros de natal, e decorar estes pinheiros com bolas vermelhas, há autores [3] que veem no cogumelo Amanita muscaria uma possível explicação para a tradição.

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Um fato curioso sobre o Amanita muscaria, é que ele cresce quase que exclusivamente debaixo dos pinheiros. O Amanita muscaria é de fato uma espécie simbiótica, sua rede de esporos só se multiplica na presença das raízes dos pinheiros ou das bétulas. Tendo em vista a associação exclusiva entre os pinheiros e os cogumelos que crescem em suas raízes, os presentes que são deixados debaixo das árvores de natal podem ser uma referência ao lugar de desenvolvimento destes cogumelos, que eram utilizados nos rituais religiosos destes mesmos povos nórdicos de onde se originaram os símbolos de natal. As renas foram animais muito importantes para o desenvolvimento desses povos, na alimentação, no transporte e mesmo nos rituais religiosos. Acabaram sendo também incorporadas como símbolo de natal, as renas voadoras que transportam São Nicolau para que entregue seus presentes na noite de natal. Os duendes, ajudantes de São Nicolau, provavelmente são uma referência ao povo nativo Sami na Finlândia, que em suas vestes coloridas e em suas cabanas de madeira preservam um modo de vida milenar na Lapônia, região finlandesa que mantém a “residência oficial do Papai Noel”, que possui um endereço de correio que recebe todo natal incontáveis cartas de crianças de todo mundo que acreditam estar se correspondendo com o verdadeiro Papai Noel. As cores associadas ao natal são notavelmente o vermelho e o branco do Amanita muscaria, que coincidem com o o vermelho e o branco da Coca-cola, empresa responsável por ter desenvolvido no século XX a imagem moderna do Papai Noel e do natal que todos conhecem.

Religião e plantas enteógenas: uma longa história

Os antropólogos conhecem muito bem a ligação das religiões tribais com as plantas enteógenas (assim chamadas por serem vistas como capazes de causar a gênesis dos deuses). Todas as sociedades tribais possuíam figuras ou personificações religiosas – os deuses – e rituais de comunicação com esses deuses intermediados por estas plantas. Estas plantas, que na verdade são drogas alteradoras de percepção, foram diversas, por exemplo Na América do Norte o Peyote, o Mescal e os cogumelos com Psilocibina, na América do Sul o Ayahuasca e na Europa os cogumelos Amanita Muscaria.

Em uma determinada etapa da história, algumas sociedades ditas primitivas já haviam desenvolvido ferramentas básicas, e eram capazes de dominar técnicas de agricultura, mas a natureza ainda não era totalmente controlada e a fertilidade das plantações permanecia um mistério a ser negociado com os deuses. As condições climáticas eram cruciais para garantir a manutenção da colheita e da pecuária, era então essencial pedir ajuda aos deuses através de rituais de fertilidade que consistiam em danças, sacrifícios, oferendas, marcadas por intensas festas e transes, em geral impulsionadas por drogas ou substâncias alucinógenas.

amanitaKNOWLEDGE Como dito, essa ligação entre as drogas e a experiência religiosa é bem documentada e conhecida no caso de religiões de povos tribais, mas as religiões ocidentais, por sua vez, não incluem o uso de tais substâncias em seus rituais. Convém perguntar, quais foram os elementos históricos que diferenciaram o judaísmo e o cristianismo das outras tradições religiosas tribais, ao terem tornado tabu todas as “ervas de comunicação divina”. Uma possível resposta, vinda de um seguidor destas religiões, seria que uma vez que a palavra divina foi revelada e redigida nos textos sagrados, nenhuma planta seria necessária para prosseguir com a comunicação divina. Mas ainda resta a pergunta, de como exatamente a palavra teria sido revelada, e se não haveria tido qualquer influência de plantas enteógenas neste processo de revelação das escrituras. Não deixa de ser interessante notar que alguns teólogos defendem que as escrituras religiosas foram reveladas à Moiśes ou Maomé quando estes se encontravam em estado de transe.

As teses de John Allegro e Robert Gordon Wasson

Segundo John Allegro, na verdade o judaísmo e o cristianismo também teriam se originado de rituais de fertilidade e os sacramentos religiosos destas tradições em sua origem estavam associados ao uso de plantas alucinógenas.

Allegro foi estudante de linguagens semitas na Universidade de Manchester e estudou dialetos hebraicos na Universidade de Oxford. Em 1953 ele foi admitido ao seleto grupo de especialistas em filologia, linguística e arqueologia que estavam decifrando os manuscritos do mar morto encontrados em 1947 – estes manuscritos são atualmente tidos como a versão mais antiga dos textos bíblicos. Neste período, Allegro era um dos mais respeitados acadêmicos em sua área, que ficou conhecido ao publicar o best-seller “The Dead Sea Scrolls” em 1956. Após algum tempo, frustrado com a falta de interesse da comunidade acadêmica em publicar e discutir as descobertas dos manuscritos do mar morto, em 1967 John Allegro concluiu seu trabalho mais radical, o livro com o título “The Sacred Mushroom and the Cross” (O cogumelo sagrado e a cruz), que foi rapidamente rejeitado por confrontar a interpretação corrente do cristianismo.

YoJesusOfTheMushroomsA tese de John Allegro [4] é de fato controversa: o judaísmo e o cristianismo estariam enraizados à antigos cultos de fertilidade que existiam em diversas partes do oriente, cultos fálicos* celebrados através do cogumelo Amanita Muscaria, por suas propriedades alucinógenas, capazes de abrir as portas para os reinos dos céus. O cogumelo, sendo visto como a presença viva de Deus na terra, o filho de Deus, teria se tornado objeto de diversos cultos religiosos. Os cristãos seriam parte de um desses cultos, que para escapar da repressão romana e judaica, desenvolveram uma narrativa em forma de criptogramas (códigos secretos) usando a história de Jesus para transmitir suas práticas de forma oculta. Aos poucos, os segredos que motivaram a narrativa se perderiam e uma igreja romana triunfante seria fundada no lugar.

O livro de Allegro é de difícil leitura para leigos, por defender suas teses através das raízes linguísticas de diversas palavras encontradas nos textos bíblicos. É dito [5] que mesmo seus críticos mais severos rejeitaram a tese de Allegro principalmente por parecer ridícula, improvável ou herética, mas nenhum deles possuía o conhecimento de Allegro nos idiomas sumério, hebraico, grego e latim para confrontar ponto-a-ponto a tese do autor.

O trabalho de Robert Gordon Wasson [6] trilha um caminho parecido, propondo que a base experimental de todas as religiões está no uso de plantas sagradas como o Amanita muscaria e a Psilocibina mexicana. Em seu livro “Soma: Divine Mushroom of Immortality (1968)”, ele defende que o Soma, a bebida sagrada mencionada inúmeras vezes no livro Rig Veda (o livro de mantras mais antigo do hinduísmo) era produzida a partir do cogumelo Amanita Muscaria. Dentre os argumentos que Wasson utiliza, um deles diz respeito a um trecho do Rig Veda que associa a bebida Soma com urina, da mesma forma como os siberianos bebiam urina para melhor aproveitar os princípios ativos do Amanita muscaria.

As teses de Wasson foram desenvolvidas em três etapas, uma progressão refletida nos livros que ele produziu. Primeiro, a descoberda dos cultos ao uso de cogumelos na América central, em seguida a identificação do cogumelo psicoativo Amanita Muscaria com o Soma dos Vedas, e em terceiro a descrição da bebida sagrada dos mistérios eulesianos, o kykeon, como uma mistura psicoativa. Em cada uma dessas estapas, Wasson trabalhou com especialistas renomados como Albert Hoffman (o químico suíço sintetizou o LSD) ou o botanista Richard Evans Schultes, professor de biologia e diretor do Museu de Botânica de Harvard.
O trabalho de Wasson foi sem dúvida melhor aceito que o de Allegro, apesar de Wasson ter sido banqueiro e jornalista, e estudioso de tradições religiosas apenas como amador.

Os estudos científicos com cogumelos

Considerando as teses que conectam as tradições religiosas com o uso de cogumelos ou plantas alucinógenas, um estudo muito importante nessa direção foi realizado em 2006 pelo instituto de medicina da Universidade John Hopkins [7].

Nesse estudo, trinta voluntários, saudáveis e de meia-idade, foram aleatoriamente divididos em dois grupos, o primeiro grupo recebeu doses do cogumelo psilocibina, o segundo grupo recebeu apenas um placebo (Ritalina).
60% dos que experimentaram o cogumelo relataram ter tido uma experiência espiritual completa. Deste mesmo grupo, 33% dos participantes indicaram que esta foi a experiência espiritual mais significante de suas vidas. Por fim, 79% dos voluntários que experimentaram o cogumelo indicaram que o sentimento de bem-estar e de satisfação na vida havia melhorado muito nas semanas seguintes ao experimento, enquanto apenas 21% dos que tomaram o placebo relataram estas melhorias.

Ao modelar o experimento, os pesquisadores tomaram cuidado com os possíveis efeitos colaterais e a influência da expectativa dos participantes em tomar a psilocibina ou o placebo. Os participantes não foram informados sobre quais substâncias eles tomariam até que o experimento fosse finalizado. Esse não foi o primeiro estudo sobre os efeitos da psilocibina, mas é tido como o primeiro estudo modelado rigorosamente para ser considerado sério nas comunidades de pesquisa em psicologia e neurociência.

O que as conclusões de um estudo como esse indicam? Se estas experiências místicas podem ser simuladas em laboratório com uso de substâncias psicoativas, há de fato uma confirmação científica para uma hipótese antiga, que conecta as experiências místicas com o uso de plantas alucinógenas. Isso quer dizer que a experiência religiosa se originaria da alucinação, e o sentimento de contato com Deus ou conexão com o cosmos seria na verdade impulsionado por uma complexa modalidade de conexões neurais, assim como o sentimento de felicidade é normalmente associada com o neurotransmissor serotonina? Não necessariamente, esta é apenas uma hipótese, incapaz de ser provada. Os próprios pesquisadores envolvidos no estudo foram cautelosos em alertar que não fazia parte de suas metas discutir a existência ou não existência de Deus com o experimento, mas apenas avançar na compreensão das características neurológicas e psicológicas das experiências religiosas. É inegável que diversas hipóteses podem ser desenvolvidas a partir das conclusões desse estudo, mas no estado atual das pesquisas neurológicas, as perguntas essenciais continuam sem resposta.

Considerações finais

Neste artigo, eu parti da experiência do meu encontro pessoal com os cogumelos Amanita muscaria, e das fantásticas ligações dele com a mitologia e a religião. A partir do reencontro com um velho conhecido de vista dos tempos de jogos de videogame e de contos infantis, tive a oportunidade de conhecer um novo horizonte de interpretações do fenômeno religioso e mitológico – mesmo sem ter tido qualquer experiência alucinógena com o Amanita muscaria, o simples encontro com ele foi capaz de modificar algum dos meus circuitos cerebrais, inserindo uma gama de possibilidades antes desconhecidas. Espero que com esse artigo eu tenha sido capaz de modificar também outros circuitos cerebrais, no sentido de fazer perguntas sobre as histórias que nos contam sobre as coisas e de buscar interpretações e questionamentos que vão além dos lugares comuns.

Referências

[1] RUBEL, Willian; ARORA David. A Study of Cultural Bias in Field Guide Determinations of Mushroom Edibility Using the Iconic Mushroom, Amanita muscaria, as an Example. Disponível em www.davidarora.com/uploads/muscaria_revised.pdf

[2] LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício de Papai Noel. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008

[3] OTT, J. (1976). Hallucinogenic Plants of North America. Berkeley, CA: Wingbow Press. ISBN 0-914728-15-6.

[4] ALLEGRO, John. The Sacred Mushroom and the Cross.

[5] WATTIAUX, Vincent. The John Allegro Affair: Some Etymological Observations.

[6] WASSON, R Gordon. Soma: Divine Mushroom of Immortality.

[7] HOPKINS SCIENTISTS SHOW HALLUCINOGEN IN MUSHROOMS CREATES UNIVERSAL “MYSTICAL” EXPERIENCE – http://www.hopkinsmedicine.org/press_releases/2006/07_11_06.html

[8] Metahistory – http://www.metahistory.org/LEX/lexicon_W.php

[9] When Gods drank Urine http://www.takeourword.com/urine.html

[10] Academic Suicide – http://www.wouterjhanegraaff.blogspot.nl/2012/09/missed-opportunities.html

Notas

* Culto fálico ou Falicismo é o culto ao falo ou lingan (pênis), e ao yoni (vulva). O termo falo deriva do grego phallós que é a representação do órgão sexual masculino como símbolo de fertilidade e força. Fonte: http://fproibido.blogspot.fr/2009/07/culto-falico.html

Tristeza e beleza

Qual a relação entre a tristeza e a beleza?

Costuma-se chamar de melancolia o sentimento associado a uma aparente fusão destas duas.

Poderíamos de alguma forma associar a melancolia à finitude humana, à morte que nos espera, à impossibilidade de acharmos algum sentido último para a existência.

Se através da lógica, dos questionamentos racionais e da ciência não conseguimos respostas, a tristeza que brota dessa impossibilidade se realiza na contemplação do irracional. O irracional é o epicentro de toda arte e de toda religião. Pense na arte como a religião dos descrentes, ou na religião como a arte dos crentes.

Como inspiração, segue um vídeo de Erik Satie em suas melodias misteriosas, somadas às animações surreais de Raoul Servais:

O ceticismo frente à Wilhelm Reich

Wilhelm Reich
Wilhelm Reich

Como admirador de uma parcela significativa da obra de Wilhelm Reich, me sinto no dever de expor alguns equívocos do texto de Richard Morrock – Pseudo-Psicoterapia: OVNIS, Cloudbusters, Conspirações e Paranóia na Psicoterapia de Wilhelm Reich – cuja tradução foi publicada recentemente no site Ceticismo Aberto. O artigo carrega consigo inconsistências que iniciam pelo próprio titulo: Pseudo-psico-terapia, o que autor deseja afirmar com este termo? Acreditaria ele na existência de psicoterapias verdadeiras e psicoterapias falsas? Pois bem, sabemos que no meio cético é comum classificar como pseudociência toda teoria que apesar de fazer uso de termos científicos, não possui qualquer validação através do método científico. É simples caracterizar alguma ideia como pseudocientífica, uma vez que temos critérios rígidos para definir o que é a ciência a partir de seu método de experimentação, comprovação e repetição. Mas quanto à psicoterapia, como afirmaremos se ela é verdadeira ou falsa, uma vez que não existe qualquer método procedural de refutação nessa área, seu resultado depende de critérios subjetivos e frequentemente apoia-se em valores metafísicos? É principalmente o sujeito quem irá poder responder se uma terapia funcionou ou não. Podemos apenas recorrer aos relatos e à estatística – com quantos indivíduos a terapia funcionou? Mesmo o efeito placebo – a crença na terapia – pode ser um indicador de sucesso quando estamos tratando de terapias que não se apoiam em valores científicos, desde as ocidentais como a Psicanálise¹, a Gestalt-Terapia e a Bioenergética, até as orientais, como a Acupuntura.

Sigmund Freud
Sigmund Freud

A partir dessa constatação, podemos observar que apesar do artigo ter saído de uma revista de ceticismo, ele não segue o procedimento típico de um bom artigo cético, que busca desqualificar um fato ou uma idéia “pseudocientífica” através de provas científicas. Trata-se na verdade de um artigo que apresenta críticas sem referências, e que ao tentar atacar Reich e os reichianos ao mesmo tempo – há tanta diferença nestes quanto há em relação a Marx e os marxistas – não completa nenhuma das duas tarefas com seriedade.

De início, o que vemos é uma biografia reichiana seguida de uma observação de caráter sociológico sobre uma suposta contradição na “prescrição revolucionária de Reich”, o que me parece um dos pontos mais problemáticos do artigo:

“Apesar de seus seguidores ignorarem o fato, há uma contradição na prescrição de Reich para a sociedade. Se, como Reich argumenta, a repressão sexual é essencial para a sobrevivência da sociedade classista opressora e se, como ele também afirma, a sociedade classista opressora impõe a repressão sexual, então por onde é que se começa a eliminar a opressão? Não pode ser através da psicoterapia, porque a classe dominante não permitiria, nem pode ser feito através da revolução, porque os trabalhadores sexualmente reprimidos não seriam capazes de criar uma sociedade verdadeiramente livre – basta olhar para a Rússia. Dadas as hipóteses de Reich, progresso social significativo é quase impossível. Não deveria ser surpresa, então, que seu grupo mais ativo de adeptos, o Colégio Americano de Orgonomia, já se afastou das idéias originais esquerdistas de seu fundador e apoia uma variedade linha dura de ultra-conservadorismo.”

Buscar a libertação do indivíduo (eliminar as neuroses autoritárias do corpo, da mente e da sexualidade) ao mesmo tempo em que a libertação na coletividade (lutar por uma sociedade igualitária, sem classes), é certamente uma das maiores contribuições de Reich no campo da luta (psico)social, mas para o autor esta é uma contradição sem solução, pois seria necessário se iniciar por algum lugar. Começar por algum lugar é preciso, mas isso não implica na impossibilidade de se trilhar caminhos simultâneos – isto é tão óbvio quanto perceber a possibilidade (e necessidade) de conciliar uma vida pessoal com uma vida pública. O autor acaba caindo então em sua própria armadilha quando lembra do fracasso da revolução russa e o atribui justamente à falta de uma revolução sexual, ou seja, uma transformação que se estendesse ao campo do indivíduo e suas relações íntimas.

Adorno e Marcuse
Adorno e Marcuse

Vale lembrar que a fusão de elementos da psicanálise com elementos do marxismo encontrada em Reich foi levada a cabo por uma infinidade de outros autores do século XX, como Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Raoul Vaneigem. Se para Morrock esta junção é uma contradição, Reich não seria o único a insistir nela. É certo que as ambições sociais desses autores não chegaram a se concretizar na realidade, assim como as ambições de Rousseau não se concretizaram com a revolução francesa e nem as de Marx com a revolução russa. Com isso, ao contrário de provar uma contradição em Reich, este ponto do artigo nos diz apenas que a libertação social e a superação do capitalismo são tarefas bastante difíceis (o que não é nenhuma novidade para os antagonistas do capital). E por mais que os relatos indiquem um conservadorismo em muitos reichianos estadunidenses, o autor comete um equívoco ao inferir que os seguidores póstumos de Reich iriam sempre abandonar a política de esquerda pelas contradições políticas de sua proposta de revolução sexual. No Brasil, por exemplo, nos anos setenta surge a somaterapia, unindo elementos da psicoterapia reichiana, com a crítica ao autoritarismo, a defesa do anarquismo e a capoeira de Angola – vista como uma dança de resistência.

Um mérito que reconheço no artigo está em acertar na identificação do que eu costumo caracterizar como o maior problema de Reich: sua insistência em combater o misticismo ao buscar transformar sua versão² da psicanálise em uma ciência, mas ironicamente terminar em uma espécie de jornada mística. Reich, como marxista tinha o materialismo (histórico/dialético) como valor determinante na composição não apenas social mas também psíquica. A descoberta do orgônio pode ser vista então como a resposta encontrada por ele para justificar seus anseios materialistas. O orgônio seria a energia sexual (a mesma “libido” ou “id” de Freud) que Reich alegava a possibilidade de ser medida por aparelhos eletrônicos ou vista a olho nu, constituindo assim seu aspecto material – físico e biológico.

Representação dialética da energia orgônica
Representação de Reich da energia orgônica

Se existe um ponto controverso nas ideias de Reich e que merece especial atenção dos céticos, sem dúvida é o orgônio. Morrock, ao pretensamente escrever um artigo cético, poderia ter dado mais atenção à questão do orgônio, mas preferiu o clichê de explorar a “ficção científica” de um livro não publicado de Reich contendo especulações sobre os UFOs (e escrito em seus anos mais difíceis e paranóicos), ou ainda, de relatar a opinião obviamente muito negativa de uma celibata, Anna Freud, sobre Reich, que era um ativista da revolução sexual. Já que o caráter pseudocientífico do orgônio foi negligenciado pelo artigo de Morrock, vou eu mesmo adotar uma postura cética e explorar brevemente esta interessante questão.

Reich manipulando cloudbuster
Reich manipulando cloudbuster

Segundo James DeMeo, os orgonomistas possuem estatísticas, documentadas em diversos trabalhos acadêmicos, em que aparentemente provam o funcionamento de cloudbusters baseados no orgônio, manipulando o clima e trazendo chuva para desertos. Mas a existência do orgônio continua tão questionável quanto a existência do inconsciente freudiano, ou do inconsciente coletivo de Jung. Por mais que Reich afirmasse ter medido e ter visto o orgônio, descrito por ele como partículas cintilantes de cor azul, se estas medições físicas realmente procedessem, a orgonomia teria se tornado uma bela ciência. Porém, Reich não submeteu nenhum artigo descrevendo seus experimentos e os justificando cientificamente, ainda que curiosamente, achava estar fazendo ciência. É provável que ele soubesse que apesar de todos os seus esforços, não possuía meios teóricos e empíricos suficientes para tornar a orgonomia em uma ciência e esta seria a fonte de sua paranóia – a impossibilidade de seu projeto de vida. Chegou a pedir ajuda a Albert Einstein, em uma reunião realizada entre os dois em 1941, onde apresentou os princípios da orgonomia e espantou o físico da relatividade ao demonstrar o aumento da temperatura causado por um acumulador de orgônio. Einstein pediu que Reich deixasse o acumulador com ele para que fossem feitos mais testes, para depois de alguns dias escrever uma carta informando o encerramento da questão, ao explicar que o aumento de temperatura ocorrera pelo fenômeno de convergência (os movimentos de ar quente e frio entre o plano horizontal da mesa na sala onde se realizavam as medidas) e não pela ação do acumulador. Reich respondera que a convergência não justificaria o fenômeno, alegando que o aumento de temperatura ocorria em diferentes condições. Einstein, por sua vez, não respondeu mais às cartas, apesar dos elogios que Reich fez ao físico em suas cartas:

“Excetuando meus colaboradores franceses e escandinavos, o senhor é o único homem de ciência que encontrei no decorrer dos últimos doze anos que compreendeu a base física de minha teoria biológica, a saber: o desenvolvimento das vesículas de matéria orgânica pela ação da energia que se desprende da matéria.”

Do ponto de vista físico, é interessante que a noção de orgônio irá se encontrar com a já abandonada ideia científica de éter. Por muito tempo os físicos consideraram a existência do éter como o meio desprovido de forma ou matéria necessário para que a onda de luz vibrasse. A ideia foi abandonada quando a teoria da relatividade restrita (em que Einstein apresenta sua equação clássica utilizando a velocidade da luz como constante) desconsiderou a necessidade do éter. Ironicamente, com a relatividade geral (a aplicação da relatividade restrita à gravidade com a descrição matemática da curvatura do espaço-tempo), Einstein viria a trazer o éter de volta à cena, dizendo: “De acordo com a teoria da relatividade geral, um espaço sem éter é impensável”. Mesmo com esta afirmação, o éter deixou de ser um interesse na física, dada a impossibilidade empírica de seu estudo. O éter se configura então como um estranho fantasma que vem e volta, que não pode ser diretamente medido e por isso especular sobre sua existência – assim como no caso do orgônio – seria um trabalho a cargo dos metafísicos, e não dos cientistas.

Albert Einstein
Albert Einstein

Por fim, é importante notar que no último parágrafo do texto de Morrock, este nos dá a entender que toda a obra de Reich deva ser invalidada por conta de suas paranóias nos seus últimos anos de vida, em que já havia sido expulso e perseguido por diversas instituições. Tal atitude é tão suspeita quanto sugerir que deveríamos também invalidar toda a obra filosófica de Nietzsche ou toda a obra matemática de John Nash (cujo a vida foi narrada no filme Uma Mente Brilhante) por terem sido também vítimas de suas vaidosas paranóias.

Notas

¹ – É evidente que a psicanálise, com suas analogias poéticas de fenômenos psíquicos a partir de figuras da mitologia grega (Édipo, Eros ou Thanatos) situa-se em um terreno mais próximo da filosofia do que da ciência. O bom senso nos permite identificar a limitação da ciência (ao menos em seu estado atual) quando estamos tratando da psique ou da subjetividade, por mais que o ceticismo em sua vertente dogmática não admita. Nao seria por acaso que o comportamentalismo buscou tornar a psicologia em uma ciência a partir da negação da existência da mente e da subjetividade.

² – Reich criou sua própria versão da psicanálise ao romper com Freud por volta de 1934, pois discordava do princípio de Thanatos (pulsão de morte) dualizando o inconsciente juntamente ao princípio de Eros (pulsão sexual, de vida). Enquanto o princípio de Eros já havia sido bem documentado na psicanálise sob a figura do “id” – a energia desejante da sexualidade – por meio de seus estudos Freud chegou a conclusão que o inconsciente desejaria também a morte e a destruição através de um princípio oposto, que identificou com Thanatos, o deus grego da morte. Para Reich, isso era inaceitável, pois afirmar uma tendência natural para o desejo da morte, da destruição e da violência significaria a impossibilidade da realização de seus ideais pacíficos e comunistas. Reich preferiu insistir na existência de apenas uma energia desejante de vida, que a chamou de orgônio, sendo o desejo de morte não uma tendência natural, mas a corrupção do orgônio pela sociedade repressora e autoritária – em suma, esta era uma crença na bondade natural humana, o bom selvagem de Rousseau. Ironicamente, em 1956, ano de seu processo levantado pela FDA (Foods and Drugs Administration) Reich iria voltar atrás e concordar com Freud no princípio de Thanatos, ao afirmar que havia detectado a presença de DOR (deadly orgone – orgônio mortal) no polêmico experimento ORANUR, em que teria submetido o orgônio a elementos radioativos e teria descoberto uma energia anti-biológica, de natureza contrária ao orgônio.

Referências

Somaterapia – http://www.somaterapia.com.br/soma.jsp

DADOUN, Roger. Cem flores para Wilhelm Reich. (Neste livro o encontro de Reich e Einstein é descrito detalhadamente)

DEMEO, James. RESPONSE TO RECENT ARTICLES IN SKEPTIC MAGAZINE – http://www.orgonelab.org/skeptic.htm

OLIVEIRA, José Guilherme. História do conceito de Éter – http://www.orgonizando.psc.br/artigos/hst-eter.htm

MARTINS, Roberto. Espaço, tempo e éter na teoria da relatividade – www.revistapesquisa.fapesp.br/pdf/einstein/martins.pdf

Chomsky e Foucault debatem

http://video.google.com/googleplayer.swf?docId=3472924502812454738

Vídeo com um trecho do debate memorável entre Noam Chomsky e Michel Foucault, ocorrido em 1971. A transcrição completa do debate, feita por Paulo Durian, pode ser lida aqui. Os pensadores debatem poder, justiça e a natureza humana. Quando discutem as relações de poder, ambos convergem, colocando como emergencial a superação das instituições opressoras. Mas discorrem a respeito da natureza humana e da formação de valores numa sociedade de classes: enquanto o linguista tem grande esperança e respostas, o filósofo tem perguntas e inquietações.

La Cravate

Filmado em 1957, La Cravate (A Gravata) foi o primeiro filme dirigido por Alejandro Jodorowsky. O curta-metragem de 35 minutos é uma adaptação de um conto de Thomas Mann. Sem nenhuma fala, e com um cenário bastante minimalista, o filme nos remete a uma apresentação teatral de mímica. A atuação de Jodorowsky como personagem principal é um grande destaque, fruto de seus estudos de mímica com Marcel Marceau.   

Veja o filme, em 3 partes:

http://www.youtube.com/watch?v=HDWtqeRnwJo

 Seguem abaixo algumas considerações pessoais sobre o filme:

Enquanto Tom Zé (na música A Gravata) vê na gravata um símbolo do
enforcamento do indíviduo pelo trabalho, Jodorowsky aparentemente a usa
como um símbolo da separação cartesiana. Vestida no pescoço, a gravata
se situa no limiar entre a cabeça e o restante do corpo humano. A
gravata pode ser vista então como a afirmação do dualismo mente-corpo
de Descartes, onde o corpo e a mente situam-se separados e
irreconciliáveis.

De início, o protagonista está orgulhoso de sua bela gravata. Mas
apaixona-se por uma mulher que desejava apenas seu corpo. Tratou então
de encomendar outras cabeças. Mas não adiantou, sua pretendente
conseguia agradar-se apenas com o corpo do rapaz. Provavelmente, se não
estivesse vestindo a gravata, iludido pelo idealismo ou pelo
materialismo, o pobre rapaz não teria se interessado pela moça. Teria
percebido que seu amor estava mais próximo do que imaginava, se não o
tivesse ignorado. Por fim, foi necessário trocar diversas vezes de máscara para que o protagonista descobrisse como ser ele próprio.

Nem amor platônico/idealista, nem puro genitalismo. Ao fim desta bela e
curta estória, Jodorowsky nos convida a jogar a gravata fora e viver o
amor de corpo e mente, fisica e espiritualmente.

Futuros Imaginários

Futuros Imaginários, de Richard Barbrook, trata principalmente de uma questão: até quando iremos permitir que nosso futuro seja imaginado a partir da ficção cientítica de Hollywood, carros voadores, guerras de andróides, tecnocracias baseadas em clonagem e etc? Não poderíamos construir nosso próprio futuro enquanto uma comunidade composta por agentes ativos e autônomos? O livro foi traduzido para o português de forma colaborativa (como na produção de programas de código aberto) e foi lançado no Brasil pelo Descentro, na décima edição do FISL (Fórum Internacional do Software Livre). O livro foi lançado em Copyleft, ou seja, a cópia é permitida e incentivada, e o download está disponível aqui.

Segue abaixo um trecho do livro.

—–

Ativistas da Nova Esquerda foram inspirados pelo sonho situacionista de quebrar a divisão entre produtores de mídia e consumidores. Em 1977, Félix Guattari anunciou orgulhosamente que as estações de rádios livres italianas criaram com êxito a primeira ágora eletrônica: “o imenso encontro permanente das ondas do ar”. Os ouvintes eram agora produtores.

No início os anos 1980, esse filósofo-psicanalista francês também celebrava as ossibilidades subversivas do sistema Minitel. Como as estações de rádio comunitárias, as redes de computadores eram inerentemente participativas e igualitárias. Em Mil platôs, Guattari – e seu colega da Nova Esquerda, Deleuze – previram que as hierarquias piramidais do estado e do mercado achariam cada vez mais dificuldade em controlar esses fluídos e autônomos “rizomas” que emergiam em oposição à sociedade cibernética de controle. Entre intelectuais radicais, essa atualização assegurou que o mcluhanismo ao estilo hippie mantivesse sua posição como a teoria de ponta. No momento em que a Internet se tornou um fenômeno de massa, os escritos de Deleuze e Guattari pareceram verdadeiramente proféticos. A conquista tecnológica mais importante da ética hacker colocou os princípios da Nova Esquerda em prática. Em meados dos anos 1990, Hakim Bey – um popularizador estadunidense dessa teoria libertária – identificou as comunidades virtuais da Internet com as subculturas subversivas das cenas das raves, das ocupações e dos festivais: “zona autônoma temporária”. Como a Nova Esquerda previra três décadas antes, o futuro era anarco-comunista. Na virada do milênio, Toni Negri – o profeta do autonomismo italiano – e Michael Hardt – seu camarada estadunidense – declaravam que a Internet preparava o caminho para a vitória das “multidões” oprimidas da humanidade sobre o “império” do capitalismo corporativo. Em apoio às suas visões, Maurizio Lazzarato anteviu a iminente queda do sistema fabril. Empresas ponto com já dispensavam as hierarquias fordistas. Dentro da emergente economia da informação, os produtores eram seus próprios gerentes.

Desde meados dos anos 1990, as possibilidades culturais e políticas abertas pela Internet se tornaram simbolizadas por novos ícones: ciborgues socialistas-feministas, hackers anarco-comunistas e artesões digitais social-democratas. Durante as últimas quatro décadas, suas atitudes “façam-vocês-mesmos” transformaram com sucesso as máquinas de fazer guerra e dinheiro em ferramentas de sociabilidade e expressão pessoal. No início do século XXI, os usuários da Internet são agora tanto consumidores quanto produtores de mídia. A vanguarda perdeu seu monopólio ideológico. O espetáculo foi quebrado. Dentro da Internet, o comunismo cibernético existe
aqui e agora. 

Entretanto, ao mesmo tempo, a chegada da sociedade da informação não precipitou uma transformação social mais extensa. O pós-fordismo é quase indistinguível do fordismo. O comunismo cibernético é bem compatível com o capitalismo ponto com. Ao contrário do que diziam as doutrinas do mcluhanismo, a convergência das mídias, das telecomunicações e da computação não libertou – e nunca libertará – a humanidade. A Internet é uma ferramenta útil, não uma tecnologia redentora. Na teoria sem fetiche, são os humanos os heróis da grande narrativa da história. No final da década de 2000, pessoas comuns tomaram o controle de sofisticadas tecnologias da
informação para melhorar suas vidas cotidianas e suas condições sociais. Liberada dos futuros pré-determinados do mcluhanismo, essa conquista emancipatória pode fornecer inspiração para novas antecipações da forma das coisas que virão. Criatividade cooperativa e democracia participativa devem ser estendidas do mundo virtual para todas as áreas da vida. Dessa vez, o novo estágio de crescimento deve ser uma nova civilização. Mais do que disciplinar o presente, essas novas visões futuristas podem ser abertas e flexíveis. Nós somos os inventores de nossas próprias tecnologias. Nós podemos controlar nossas próprias máquinas. Nós somos os criadores das formas das
coisas que virão.

A Peste e o Toque de Recolher em Joinville

Como Kafka e Sartre, Albert Camus nos apresenta o ser humano face ao absurdo da existência. Quando tive contato com o livro de sua autoria "A Peste", a primeira impressão que tive, é que Oran, a cidade onde a história se passa, guarda muitas semelhanças com Joinville. O trecho abaixo dá uma idéia:

  Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entendiam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema, e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados a noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro.

O livro ilustra a reação dos habitantes de Oran, ao depararem-se com uma peste contagiosa. Naturalmente, a maiAlbert Camusor parte dos cidadãos demorou algumas semanas para admitir a existência da peste. Isso pois lhes parecia absurdo que uma cidade tão exemplar nos quesitos da moral e dos bons costumes, onde todos trabalham com tanto esforço, poderia ser atingida por um flagelo tão horrível.

Com o decorrer do tempo, o médico Bernard Rieux, junto com outros voluntários, iniciam uma luta contra a peste, mesmo desconhecendo tanto a origem do mal, bem como se será realmente possível vencê-lo. Uma história profunda e existencialista, refletindo sobre diversos aspectos da condição humana, onde a cidade de Oran pode ser vista como uma espécie de microcosmo que representa simbolicamente as situações gerais do macrocosmo.

Bem, Joinville não está sendo atingida por nenhuma peste bubônica, mas mesmo assim, um grupo de vereadores insiste em implantar um toque de recolher para menores de 18 anos, a partir das 23h. Será isso nostalgia de um tempo onde as noites eram marcadas por um vazio imenso, acompanhado apenas de militares armados controlando a ordem pública?

Alegam que é uma medida necessária para controlar a criminalidade infantil. Uma reconstrução sintática e semântica mais adequada para mim seria dizer que essa é uma atitude infantil de vereadores criminosos. Pois para mim impedir jovens de transitar pelas ruas representa um crime contra o direito fundamental de ir e vir.

Lembro de uma vez quando tinha 16 ou 17 anos, que subi o morro do mirante de bicicleta a noite com alguns amigos, para observar de lá do alto do Morro do Boa Vista a beleza das luzes da cidade na madrugada. Depois pedalamos mais um pouco pelas ruas desertas, e voltamos para a casa quando o dia estava amanhecendo. Essa experiência nunca teria sido possível, se um policial nos parasse e levasse-nos até em casa, alegando cumprir ordens municipais.

É necessário reconhecer que há toda uma problemática de uso de crack por menores nas ruas (bem como por maiores), mas que é um problema sério e complexo, que geralmente está associado a frustrações psicológicas. Seria mais interessante um plano municipal de assistência psicológica para acompanhar essas pessoas que vivem nas ruas, para entender porquê essas crianças foram obrigadas a tomar essa vida (provavelmente não é uma escolha voluntária). A prática do toque de recolher seria o típico tapar o sol com a peneira, seria obrigar essas pessoas mais prejudicadas a usarem as drogas dentro de casas abandonadas e fingir que o problema não existe. Resumindo, é uma prática de higienização social, o "varrer a sujeira para de baixo do tapete".

Paul Feyerabend: pela democracia na ciência

Feyerabend tornou-se famoso pela sua visão anarquista da ciência e por
sua suposta rejeição da existência de regras metodológicas universais. Ele indignou-se especialmente com
atitudes condescendentes de muitos cientistas em relação a tradições
alternativas. Por exemplo, ele pensava que opiniões negativas a
respeito da astrologia e a eficiência de danças da chuva não estavam
justificadas por pesquisas cientifícas, e dissimulavam
predominantemente atitudes negativas de elitismo e racismo. Em sua
opinião, a ciência tornou-se uma ideologia repressiva, muito embora
tenha surgido como um movimento de libertação. Segundo o pensamento de
Feyerabend uma sociedade pluralística deve proteger-se de ser muito
influenciada pela ciência, assim como de outras ideologias.

Feyerabend, fazendo uma careta verycrazyIniciando com a suposição de que um método científico universal
historicamente não existe, Feyerabend argumenta que a ciência não
merece o status privilegiado que possui na sociedade ocidental.
Uma vez que os pontos de vista científicos não surgem de um método
universal que garanta conclusões de alta qualidade, ele sustentou que
não há justificação para a valorização científica reivindicada sobre
outras ideologias, como as religiões, por exemplo. Argumenta também que
conquistas científicas como a chegada do homem à lua não são razão
suficiente para dar à ciência um status especial. Em sua
opinião, não é justo utilizar suposições científicas para determinar
quais problemas merecem ser resolvidos e para julgar o mérito de outras
ideologias. Além disso, o sucesso dos cientistas está tradicionalmente
envolvido com elementos não-científicos, tais como inspiração a partir
de pensamentos míticos ou de fontes religiosas.

Baseado nestes argumentos, Feyerabend defendeu a idéia de que a
ciência deve ser separada do estado da mesma maneira que a religião é
separada na moderna sociedade secular. Ele vislumbrou uma "sociedade
livre" na qual "todas as tradições têm iguais direitos e igual acesso
aos centros de poder". Por exemplo, os pais devem ser capazes de
determinar o contexto ideológico da educação de seus filhos, em vez de
terem suas opções limitadas pelos padrões científicos. De acordo com
Feyerabend, a ciência deve também estar sujeita ao controle
democrático: não apenas determinar que assuntos devem ser pesquisados
através de eleição popular, as suposições e conclusões científicas
também devem ser supervisionadas por comitês de pessoas leigas. Segundo
ele os cidadãos devem utilizar seus próprios princípios ao tomar
decisões a respeito do que realmente importa. Em sua opinião, a idéia
de que as decisões devam ser racionalistas é elitista, pois
assume que filósofos ou cientistas estão em posição de determinar os
critérios pelos quais as pessoas em geral devem tomar suas decisões.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Feyerabend

A sociedade dos Big Brothers voluntários

Há mais de uma década, todas as maiores cidades do mundo passaram a
ser equipadas com câmeras de vigilância. A justificativa dada pelos
governos sempre foi clara: garantir a segurança. A maior parte das
pessoas não questionou e acabou por aceitar essa nova realidade,
sutilmente imposta pelas autoridades locais. O senso comum diz "porquê
vou me preocupar com câmeras? Não tenho nada a esconder, sou um cidadão
de bem, e além do mais, essas câmeras são importantes para que sejam
identificados atos criminosos" . A identificação dos criminosos
certamente é um dos objetivos da implantação das câmeras, mas há um
outro ponto que não é exatamente o controle da violência, mas um tipo
muito peculiar de controle social. É claro que precisamos ainda definir
o que são "os criminosos". É comum governos e corporações considerarem
criminosos aqueles que lutam contra injustiças praticadas por essas
instituições. Um exemplo simples, adaptado à realidade de Joinville,
foi a perseguição realizada contra integrantes do Movimento Passe Livre
em 2005 [1]. Seguranças contratados pelas empresas de transporte
coletivo da cidade seguiram e ameaçaram através de  "terrorismo
psicológico"  militantes do movimento, que estavam participando de
protestos contra os aumentos da tarifa de ônibus. Com as câmeras de
vigilância, esse tipo de controle social torna-se potencialmente ainda
mais efetivo.

Analogia com a ficção de George Orwell

Na
vigilância pública realizada pelos governos e polícias, todas as
imagens ficam gravadas e restritas a um número limitado de pessoas, que
trabalham nas centrais de monitoramento.
Esse é um tipo de controle realizado pelas autoridades com objetivos de manter a "ordem" e a "harmonia".

Big BrotherPelo
caráter de imposição e controle vertical, pode ser feito uma analogia
entre esse tipo de vigilância e o que ocorre na ficção de George
Orwell, 1984, escrita no ano de 1948.
Em 1984, todas as ruas e casas
são equipadas com tele-telas, dispositivos que filmam e reproduzem a
imagem do Grande Irmão (Big Brother), com seu olhar severo de eterno
vigilante. O Grande Irmão é uma figura interessante, pois apesar de ser
visto pelas tele-telas, ninguém nunca o viu fisicamente. Trata-se de
uma figura tão mistificada e poderosa, que aparentemente não possui
existência física.

O objetivo das tele-telas é registrar atos que
possam representar dissidências ao Estado/Partido. A ênfase nesse caso
é na disciplina, onde todas as pessoas devem obediencia total ao
estado, sendo proibida qualquer forma de pensamento livre, criatividade
ou mesmo expressão de emoções. A única expressão permitida é a
declaração de dever ao Partido.

Todavia, seria exagerado e
paranóico afirmar que a ficção de Orwell  está se profetizando. O
controle por meio do Estado descrito por Orwell, representa um Poder
que seria melhor associado com aquilo que Michel Foucault chamou de
Sociedade Disciplinar, a partir de seus estudos das chamadas
instituições disciplinares clássicas: clínica/hospício, escola e
prisões. Essa Sociedade Disciplinar foi a forma como o Poder se
desenvolveu no século XX, através dos regimes totalitários, guiados por
nomes como Stalin, Hitler, Mussolini, Franco ou ainda, Getúlio Vargas.

Da Sociedade Disciplinar à Sociedade de Controle

Com
o advento dos meios de comunicação em massa, dos regimes de democracia
representativa e dos setores de prestação de serviços, o Poder veio a
adquirir formas mais sofisticadas de ação, menos baseado na repressão
explícita, dando ênfase às liberdades de consumo e a incorporação de
símbolos, onde a publicidade utiliza princípios de semiótica para
vender cada vez mais. Gilles Deleuze defende que a concretização da
Sociedade Disciplinar é a Sociedade de Controle (que normalmente vem
sendo chamada de Sociedade de Rede ou da Informação).  Trata-se do
capital assumindo a forma rizomática, interiorizada, onde o controle
passa a ser mais horizontal do que vertical, mesmo que isso pareça
contraditório.

Depois do capital ter se apropriado das artes,
dos meios de comunicação e ter se adentrado cada vez mais nos campos
subjetivos, agora ele se funde nos processos criativos, no
inconsciente, nos desejos humanos mais íntimos. Diminui-se a ação do
Poder, sob a forma da Disciplina, na forma agressiva e impositora. Na
sociedade disciplinar existia a censura, a confissão, a perda da
identidade. Agora você pode ser quem quiser, ser comunista e usar uma
camiseta do MST, ter um site na internet criticando qualquer governo de
qualquer país (com excessão da China), que provavelmente você não será
exilado por isso. Essas liberdades são sempre apenas liberdades de
consumo, onde tudo é reduzido ao título de mercadoria, mesmo a
rebeldia. Desse modo, poderíamos concluir que se faz cada vez menos
necessária uma imposição de disciplina de um governo sob a população,
pois as próprias pessoas estão começando a realizar esse (auto)controle
[2] , por exemplo, através de formas voluntárias de vigilância e
exposição de suas vidas.

O cenário Web

O
sucesso das redes de relacionamento social na web podem ser indícios de
que Deleuze tenha alguma razão. Luli Radfahrer [3] afirma que o
micro-blog twitter é uma espécie de Big Brother voluntário, onde as
pessoas dão detalhes sobre tudo o que estão fazendo, sem que sejam
obrigadas a isso. De fato, parece que estamos vivendo um tempo da
efetivação dos Big Brothers voluntários, sendo o sucesso de audiência
do programa de televisão de mesmo nome o maior exemplo de como a
vigilância é um fator crucial em nossa atual sociedade.

Homem com as calças caindo pego pelo Street ViewA
nova tecnologia do Google, o Street View, leva essa vigilância a um
nível ainda mais alto. O Google Street View permite que se navegue
pelas ruas de uma cidade em três dimensões, com 360 graus na horizontal
e 270 graus na vertical. Um carro do Google transita pelas ruas das
cidades, tirando fotos, que ficam disponíveis a qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo. É a situação dos big brother voluntários, onde todos vigiam todos, levada ao nível das imagens.

Alguns sites como a comunidade GSTV Brasil
foram criados para disponibilizar imagens de pessoas em momentos
frustrantes, captadas pelo Street View. Houve também um caso polêmico
de divórcio causado através do Street View: um homem havia avisado sua
mulher que sairia de férias e navegando pela ferramenta ela descobriu
que o carro de seu marido estava em frente à casa de sua amante, na
mesma cidade.Após esses casos, o Google passou a borrar os rostos das
pessoas e placas de carros nas imagens, alegando que dessa forma
protegeria a privacidade das pessoas. 

O Google vem seguindo
há alguns anos a prática de não apagar nenhuma informação de seus
servidores e é bem provável que o mesmo está sendo aplicado ao Street
View. Isso significa que seus servidores tem o potencial de armazenar
um histórico com imagens de tudo o que ocorre nas maiores cidades do
mundo.

A implantação de câmeras pelas cidades é algo que ameaça
não apenas a privacidade, mas o próprio livre-arbítrio. A partir do
momento que sabemos que existem câmeras mapeando nossos movimentos,
agiremos de forma diferente, guiados pelo medo de sermos vistos sendo
nós mesmos. Temo que o produto a longo prazo disso seja algo como
descrito em Homem Duplo, conto cyberpunk de Philip K. Dick, onde o
personagem principal se vê numa situação onde trabalha como vigilante,
controlando todos os seus amigos e ao mesmo tempo vigiando sua própria
vida.

Todos esse fatores, a princípio, podem nos levar a adotar
uma visão pessimista. Mas há uma série de iniciativas baseadas em
princípios vindos da cultura hacker que tem lutado por políticas de
privacidade na internet. A Privacy International, por exemplo, foi quem conseguiu que o Google borrasse o rosto das pessoas no Street View. É
importante que questinemos a implantação de novas tecnologias, pois
elas nunca são neutras, tendo impactos diversos sob todos os espectros
da vida humana.

[1] Mais informações sobre o caso em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/11/335517.shtml

[2] Mais sobre poder rizomático, em  "Neuromagma e Multidão",
por Peter Pal Perbart. Disponível em
http://www.rizoma.net/interna.php?id=140&secao=neuropolitica

[3] Entrevista com Luli Radfahrer, disponível em http://www.luli.com.br/media/0828_groisman.mp3