O fantástico mundo de Amanita Muscaria

Amanita muscaria na bicicletaNos meses em que vivi na Finlândia, tive a oportunidade de colher alguns cogumelos Amanita Muscaria, aqueles famosos de chapéu vermelho com manchas brancas (belíssimos cogumelos, por sinal). Eu já havia ouvido falar dos efeitos alucinógenos deste cogumelo e também que ele poderia ser muito perigoso, então perguntei para alguns finlandeses o que eles achavam e eles me aconselharam a ficar longe destes fungos, pois certamente morreria se os experimentasse. De certa forma, isso me interessou mais ainda.

Sol e amanita muscaria Depois de algumas pesquisas, descobri que o Amanita Muscaria é na verdade fruto de grande mistificação, pois mesmo em alguns dicionários de cogumelos ele é tratado como sendo mortalmente tóxico, mas em publicações científicas importantes, pesquisadores alegam que se trata de um cogumelo levemente e não mortalmente tóxico, e que não há fontes precisas de que o cogumelo tenha causado qualquer morte por intoxicação na história. Além disso, um dos artigos [1] fornece um método seguro para desintoxicação do cogumelo, tornando-o apropriado para ser apreciado na culinária – posso garantir que ele é delicioso com azeite de oliva (a Bruna escreveu em seu blog sobre a ótima experiência culinária que tivemos com ele). O método de desintoxicação consiste simplesmente em ferver o cogumelo na água por tempo suficiente para diluir o ácido ibotênico e o muscimol (os componentes tóxicos e psicoativos) e depois descartar esta água. Existe sim um cogumelo do gênero Amanita (Amanita Alphaloide), que é mortalmente tóxico: sua cor é branco-esverdeada (jamais seria confundido com o vermelho Amanita Muscaria) e essa espécie sozinha é a maior causadora de mortes por intoxicação de cogumelos no mundo.

Mas mesmo quando o princípio ativo do Amanita Muscaria é deliberadamente encarado (para os curiosos que se arriscam a cruzar as fronteiras da mente), com o devido preparo de desidratação do cogumelo, o que se tem é uma experiência no máximo imprevisível: com um ou dois cogumelos, é possível que não haja qualquer efeito, mas com um pouco mais pode se ter uma média ou avassaladora experiência alucinógena. Isso ocorre pois a dosagem dessa espécie é muito difícil de ser controlada, uma vez que cada cogumelo pode ter diferentes concentrações dos princípios ativos de acordo com a estação, a qualidade do solo, o tempo de exposição ao sol e a temperatura ambiente.

O uso alucinógeno deste cogumelo em rituais religiosos foi de grande importância para antigos povos do norte, tendo sido utilizado por xamans da Sibéria há milhares de anos. Há relatos de que os siberianos e o povo Sami na Finlândia possuem uma prática muito curiosa de consumir o princípio ativo do Amanita Muscaria através da urina das renas por eles criadas, já que o organismo das renas converte toda a substância nociva ao corpo humano (ácido ibotênico) na substância responsável pelas alucinações (muscimol), tornando o cogumelo ainda mais potente para as experiências xamânicas.

Super Mario amanita As referências ao Amanita Muscaria são diversas na cultura popular, sejam nos desenhos e histórias infantis como Alice no País das Maravilhas, Branca de Neve e os Sete Anões, Smurphs, ou jogos de videogame como a série Super Mario Bros. Mas talvez a faceta mais peculiar do Amanita Muscaria sejam as inúmeras hipóteses que conectam este cogumelo ao simbolismo do natal (ou do solstício de inverno), e ainda mais polêmicas, as teses de alguns autores como Robert Gordon Wasson e John Allegro que identificam o uso deste cogumelo como elemento essencial na origem de tradições religiosas como o hinduísmo e o cristianismo. Gostaria de apresentar aqui algumas dessas hipóteses e teorias, que apesar de terem um teor especulativo, são baseadas em estudos sérios. Mas lembro que se tratam de teorias, e que não está ao meu alcance dizer se são verdadeiras ou falsas, mas nem por isso deixam de ser muito interessantes no contexto das histórias alternativas da religião.

O natal psicoativo dos nórdicos

Talvez nem todas as pessoas se perguntam sobre as causas históricas do simbolismo de natal. Sem dúvida o ponto mais óbvio sobre a origem destes símbolos é que eles pertencem ao contexto das terras frias do norte (em especial Rússia e Escandinávia), onde antes de ter sido convertido em festividade cristã, o natal era celebrado como o solstício de inverno, que ocorre normalmente no dia 21 de dezembro. Pinheiros são as únicas árvores que se mantém verdes em meio à neve do rígido inverno da Rússia e da Escandinávia e provavelmente por esse motivo foram escolhidos como as árvores de natal. Ironicamente, em terras onde não há neve e em que a mitologia natalina está totalmente afastada da realidade local (como no Brasil), os pinheiros de natal são normalmente decorados com pedaços de algodão para que pareçam estarem expostos à neve. A troca de presentes e a figura de Papai Noel são normalmente associados ao russo São Nicolau, apesar do antropólogo Lévi-Strauss [2] ter encontrado um grande número de outras referências pagãs para este personagem em diferentes sociedades tribais. Mas quanto a deixar presentes debaixo dos pinheiros de natal, e decorar estes pinheiros com bolas vermelhas, há autores [3] que veem no cogumelo Amanita muscaria uma possível explicação para a tradição.

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Um fato curioso sobre o Amanita muscaria, é que ele cresce quase que exclusivamente debaixo dos pinheiros. O Amanita muscaria é de fato uma espécie simbiótica, sua rede de esporos só se multiplica na presença das raízes dos pinheiros ou das bétulas. Tendo em vista a associação exclusiva entre os pinheiros e os cogumelos que crescem em suas raízes, os presentes que são deixados debaixo das árvores de natal podem ser uma referência ao lugar de desenvolvimento destes cogumelos, que eram utilizados nos rituais religiosos destes mesmos povos nórdicos de onde se originaram os símbolos de natal. As renas foram animais muito importantes para o desenvolvimento desses povos, na alimentação, no transporte e mesmo nos rituais religiosos. Acabaram sendo também incorporadas como símbolo de natal, as renas voadoras que transportam São Nicolau para que entregue seus presentes na noite de natal. Os duendes, ajudantes de São Nicolau, provavelmente são uma referência ao povo nativo Sami na Finlândia, que em suas vestes coloridas e em suas cabanas de madeira preservam um modo de vida milenar na Lapônia, região finlandesa que mantém a “residência oficial do Papai Noel”, que possui um endereço de correio que recebe todo natal incontáveis cartas de crianças de todo mundo que acreditam estar se correspondendo com o verdadeiro Papai Noel. As cores associadas ao natal são notavelmente o vermelho e o branco do Amanita muscaria, que coincidem com o o vermelho e o branco da Coca-cola, empresa responsável por ter desenvolvido no século XX a imagem moderna do Papai Noel e do natal que todos conhecem.

Religião e plantas enteógenas: uma longa história

Os antropólogos conhecem muito bem a ligação das religiões tribais com as plantas enteógenas (assim chamadas por serem vistas como capazes de causar a gênesis dos deuses). Todas as sociedades tribais possuíam figuras ou personificações religiosas – os deuses – e rituais de comunicação com esses deuses intermediados por estas plantas. Estas plantas, que na verdade são drogas alteradoras de percepção, foram diversas, por exemplo Na América do Norte o Peyote, o Mescal e os cogumelos com Psilocibina, na América do Sul o Ayahuasca e na Europa os cogumelos Amanita Muscaria.

Em uma determinada etapa da história, algumas sociedades ditas primitivas já haviam desenvolvido ferramentas básicas, e eram capazes de dominar técnicas de agricultura, mas a natureza ainda não era totalmente controlada e a fertilidade das plantações permanecia um mistério a ser negociado com os deuses. As condições climáticas eram cruciais para garantir a manutenção da colheita e da pecuária, era então essencial pedir ajuda aos deuses através de rituais de fertilidade que consistiam em danças, sacrifícios, oferendas, marcadas por intensas festas e transes, em geral impulsionadas por drogas ou substâncias alucinógenas.

amanitaKNOWLEDGE Como dito, essa ligação entre as drogas e a experiência religiosa é bem documentada e conhecida no caso de religiões de povos tribais, mas as religiões ocidentais, por sua vez, não incluem o uso de tais substâncias em seus rituais. Convém perguntar, quais foram os elementos históricos que diferenciaram o judaísmo e o cristianismo das outras tradições religiosas tribais, ao terem tornado tabu todas as “ervas de comunicação divina”. Uma possível resposta, vinda de um seguidor destas religiões, seria que uma vez que a palavra divina foi revelada e redigida nos textos sagrados, nenhuma planta seria necessária para prosseguir com a comunicação divina. Mas ainda resta a pergunta, de como exatamente a palavra teria sido revelada, e se não haveria tido qualquer influência de plantas enteógenas neste processo de revelação das escrituras. Não deixa de ser interessante notar que alguns teólogos defendem que as escrituras religiosas foram reveladas à Moiśes ou Maomé quando estes se encontravam em estado de transe.

As teses de John Allegro e Robert Gordon Wasson

Segundo John Allegro, na verdade o judaísmo e o cristianismo também teriam se originado de rituais de fertilidade e os sacramentos religiosos destas tradições em sua origem estavam associados ao uso de plantas alucinógenas.

Allegro foi estudante de linguagens semitas na Universidade de Manchester e estudou dialetos hebraicos na Universidade de Oxford. Em 1953 ele foi admitido ao seleto grupo de especialistas em filologia, linguística e arqueologia que estavam decifrando os manuscritos do mar morto encontrados em 1947 – estes manuscritos são atualmente tidos como a versão mais antiga dos textos bíblicos. Neste período, Allegro era um dos mais respeitados acadêmicos em sua área, que ficou conhecido ao publicar o best-seller “The Dead Sea Scrolls” em 1956. Após algum tempo, frustrado com a falta de interesse da comunidade acadêmica em publicar e discutir as descobertas dos manuscritos do mar morto, em 1967 John Allegro concluiu seu trabalho mais radical, o livro com o título “The Sacred Mushroom and the Cross” (O cogumelo sagrado e a cruz), que foi rapidamente rejeitado por confrontar a interpretação corrente do cristianismo.

YoJesusOfTheMushroomsA tese de John Allegro [4] é de fato controversa: o judaísmo e o cristianismo estariam enraizados à antigos cultos de fertilidade que existiam em diversas partes do oriente, cultos fálicos* celebrados através do cogumelo Amanita Muscaria, por suas propriedades alucinógenas, capazes de abrir as portas para os reinos dos céus. O cogumelo, sendo visto como a presença viva de Deus na terra, o filho de Deus, teria se tornado objeto de diversos cultos religiosos. Os cristãos seriam parte de um desses cultos, que para escapar da repressão romana e judaica, desenvolveram uma narrativa em forma de criptogramas (códigos secretos) usando a história de Jesus para transmitir suas práticas de forma oculta. Aos poucos, os segredos que motivaram a narrativa se perderiam e uma igreja romana triunfante seria fundada no lugar.

O livro de Allegro é de difícil leitura para leigos, por defender suas teses através das raízes linguísticas de diversas palavras encontradas nos textos bíblicos. É dito [5] que mesmo seus críticos mais severos rejeitaram a tese de Allegro principalmente por parecer ridícula, improvável ou herética, mas nenhum deles possuía o conhecimento de Allegro nos idiomas sumério, hebraico, grego e latim para confrontar ponto-a-ponto a tese do autor.

O trabalho de Robert Gordon Wasson [6] trilha um caminho parecido, propondo que a base experimental de todas as religiões está no uso de plantas sagradas como o Amanita muscaria e a Psilocibina mexicana. Em seu livro “Soma: Divine Mushroom of Immortality (1968)”, ele defende que o Soma, a bebida sagrada mencionada inúmeras vezes no livro Rig Veda (o livro de mantras mais antigo do hinduísmo) era produzida a partir do cogumelo Amanita Muscaria. Dentre os argumentos que Wasson utiliza, um deles diz respeito a um trecho do Rig Veda que associa a bebida Soma com urina, da mesma forma como os siberianos bebiam urina para melhor aproveitar os princípios ativos do Amanita muscaria.

As teses de Wasson foram desenvolvidas em três etapas, uma progressão refletida nos livros que ele produziu. Primeiro, a descoberda dos cultos ao uso de cogumelos na América central, em seguida a identificação do cogumelo psicoativo Amanita Muscaria com o Soma dos Vedas, e em terceiro a descrição da bebida sagrada dos mistérios eulesianos, o kykeon, como uma mistura psicoativa. Em cada uma dessas estapas, Wasson trabalhou com especialistas renomados como Albert Hoffman (o químico suíço sintetizou o LSD) ou o botanista Richard Evans Schultes, professor de biologia e diretor do Museu de Botânica de Harvard.
O trabalho de Wasson foi sem dúvida melhor aceito que o de Allegro, apesar de Wasson ter sido banqueiro e jornalista, e estudioso de tradições religiosas apenas como amador.

Os estudos científicos com cogumelos

Considerando as teses que conectam as tradições religiosas com o uso de cogumelos ou plantas alucinógenas, um estudo muito importante nessa direção foi realizado em 2006 pelo instituto de medicina da Universidade John Hopkins [7].

Nesse estudo, trinta voluntários, saudáveis e de meia-idade, foram aleatoriamente divididos em dois grupos, o primeiro grupo recebeu doses do cogumelo psilocibina, o segundo grupo recebeu apenas um placebo (Ritalina).
60% dos que experimentaram o cogumelo relataram ter tido uma experiência espiritual completa. Deste mesmo grupo, 33% dos participantes indicaram que esta foi a experiência espiritual mais significante de suas vidas. Por fim, 79% dos voluntários que experimentaram o cogumelo indicaram que o sentimento de bem-estar e de satisfação na vida havia melhorado muito nas semanas seguintes ao experimento, enquanto apenas 21% dos que tomaram o placebo relataram estas melhorias.

Ao modelar o experimento, os pesquisadores tomaram cuidado com os possíveis efeitos colaterais e a influência da expectativa dos participantes em tomar a psilocibina ou o placebo. Os participantes não foram informados sobre quais substâncias eles tomariam até que o experimento fosse finalizado. Esse não foi o primeiro estudo sobre os efeitos da psilocibina, mas é tido como o primeiro estudo modelado rigorosamente para ser considerado sério nas comunidades de pesquisa em psicologia e neurociência.

O que as conclusões de um estudo como esse indicam? Se estas experiências místicas podem ser simuladas em laboratório com uso de substâncias psicoativas, há de fato uma confirmação científica para uma hipótese antiga, que conecta as experiências místicas com o uso de plantas alucinógenas. Isso quer dizer que a experiência religiosa se originaria da alucinação, e o sentimento de contato com Deus ou conexão com o cosmos seria na verdade impulsionado por uma complexa modalidade de conexões neurais, assim como o sentimento de felicidade é normalmente associada com o neurotransmissor serotonina? Não necessariamente, esta é apenas uma hipótese, incapaz de ser provada. Os próprios pesquisadores envolvidos no estudo foram cautelosos em alertar que não fazia parte de suas metas discutir a existência ou não existência de Deus com o experimento, mas apenas avançar na compreensão das características neurológicas e psicológicas das experiências religiosas. É inegável que diversas hipóteses podem ser desenvolvidas a partir das conclusões desse estudo, mas no estado atual das pesquisas neurológicas, as perguntas essenciais continuam sem resposta.

Considerações finais

Neste artigo, eu parti da experiência do meu encontro pessoal com os cogumelos Amanita muscaria, e das fantásticas ligações dele com a mitologia e a religião. A partir do reencontro com um velho conhecido de vista dos tempos de jogos de videogame e de contos infantis, tive a oportunidade de conhecer um novo horizonte de interpretações do fenômeno religioso e mitológico – mesmo sem ter tido qualquer experiência alucinógena com o Amanita muscaria, o simples encontro com ele foi capaz de modificar algum dos meus circuitos cerebrais, inserindo uma gama de possibilidades antes desconhecidas. Espero que com esse artigo eu tenha sido capaz de modificar também outros circuitos cerebrais, no sentido de fazer perguntas sobre as histórias que nos contam sobre as coisas e de buscar interpretações e questionamentos que vão além dos lugares comuns.

Referências

[1] RUBEL, Willian; ARORA David. A Study of Cultural Bias in Field Guide Determinations of Mushroom Edibility Using the Iconic Mushroom, Amanita muscaria, as an Example. Disponível em www.davidarora.com/uploads/muscaria_revised.pdf

[2] LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício de Papai Noel. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008

[3] OTT, J. (1976). Hallucinogenic Plants of North America. Berkeley, CA: Wingbow Press. ISBN 0-914728-15-6.

[4] ALLEGRO, John. The Sacred Mushroom and the Cross.

[5] WATTIAUX, Vincent. The John Allegro Affair: Some Etymological Observations.

[6] WASSON, R Gordon. Soma: Divine Mushroom of Immortality.

[7] HOPKINS SCIENTISTS SHOW HALLUCINOGEN IN MUSHROOMS CREATES UNIVERSAL “MYSTICAL” EXPERIENCE – http://www.hopkinsmedicine.org/press_releases/2006/07_11_06.html

[8] Metahistory – http://www.metahistory.org/LEX/lexicon_W.php

[9] When Gods drank Urine http://www.takeourword.com/urine.html

[10] Academic Suicide – http://www.wouterjhanegraaff.blogspot.nl/2012/09/missed-opportunities.html

Notas

* Culto fálico ou Falicismo é o culto ao falo ou lingan (pênis), e ao yoni (vulva). O termo falo deriva do grego phallós que é a representação do órgão sexual masculino como símbolo de fertilidade e força. Fonte: http://fproibido.blogspot.fr/2009/07/culto-falico.html

5 meses vivendo na França

Ser um estrangeiro é certamente agradável num primeiro momento, por se encontrar um mundo inteiramente novo, mas em seguida descobrimos que este mundo novo é alheio e exige adaptação..

Estação de Saint-Étienne
Estou há 5 meses vivendo em Saint-Étienne, França, e agora que termino meu primeiro semestre de estudos de mestrado, posso escrever com tempo e com a mente tranquila sobre a experiência. Como em qualquer lugar, existem pontos positivos e negativos sobre morar e estudar aqui. Por ironia esta cidade guarda algumas semelhanças com Joinville, tanto pelo tamanho quanto pela cultura. Saint Etienne é uma cidade conhecida por sua expressiva indústria (bicicletas e armamentos) o que a aproxima de Joinville como uma cidade de trabalhadores industriais – em que grande parte das pessoas ocupam suas vidas principalmente do trabalho e dos negócios. Um sintoma direto disso é que as ruas ficam desertas a partir das 9 da noite e um silêncio fantasma toma conta da cidade. Por outro lado, à luz do dia a cidade tem um aspecto acolhedor, com diversos cafés com mesas a céu aberto e belas praças onde as crianças costumam brincar.

Universidade Jean Monnet
Universidade Jean Monnet
A universidade funciona de uma forma que inicialmente me pareceu estranha, sem horário fixo semanal para as disciplinas. Ou seja, a cada semana o número total de aulas e a distribuição destas para cada disciplina é diferente. Durante o semestre, a distribuicão das aulas segue mais ou menos a curva gausssiana: nas primeiras semanas há poucas aulas e apenas na manhã; nas semanas seguintes a quantidade de aulas aumenta gradativamente até chegar ao pico, com aulas todos os dias em todas as manhãs e tardes; e ao fim do semestre a quantidade de aulas volta então a diminuir até chegar aos exames finais. Estudei disciplinas que flertam com o campo da visão computacional e das cores: Algorithm Design and Analysis, Image Processing and Analysis, Color Science, Optics and Photonics e Data Analysis and Statistics. Todas elas apresentam conteúdos que são de grande interesse para mim, mas quando apresentadas em um pacote acadêmico, com a pressão de conseguir notas suficientes para ser aprovado, infelizmente acaba perdendo um pouco a graça.. Mas os momentos passados em laboratórios, reproduzindo experimentos como o prisma de Newton que divide a luz branca em seus componentes coloridos, reanimam o sentimento da descoberta e da curiosidade, que deveriam ser a essência da atividade científica.

Trem Saint-Étienne
Trem de Saint-Étienne
Sobre o trânsito e a mobilidade urbana em Saint-Étienne, há um sistema interessante de aluguel de bicicletas, que inclusive sou usuário, com uma assinatura de 15 euros por ano para utilizar livremente qualquer bicicleta pública quando for preciso. O ponto negativo é que praticamente não há ciclovias para o uso destas bicicletas. O principal meio de transporte público dentro da cidade é o trem, que corta a rua principal de Saint Étienne. Como nesta rua há apenas o trilho de trem em todo seu percurso, ciclistas e motoristas frequentemente se locomovem por esse trilho, tomando cuidado para que não o façam quando o trem está a caminho – o que é certamente arriscado para os ciclistas, mas é a única opção em alguns casos.

Estou morando em uma residência universitária chamada La Cotonne, em uma kitnet de 9 metros quadrados. Pela primeira vez estou pagando minhas contas, fazendo minha própria comida e lavando minhas roupas – o sentimento de independência financeira é positivo e gratificante. A residência tem pontos positivos, como a cozinha compartilhada, onde é possível conhecer pessoas diferentes e o ambiente acaba lembrando as tradicionais cozinhas de hostel. Mas esta residência tem alguns problemas sérios que me deixaram desapontado. Em nome da “boa convivência”, não se permite que faça qualquer barulho nos quartos após as 11 da noite. Há um inspetor que controla os quartos, e caso eu esteja conversando com alguém ao telefone, por exemplo, ele irá bater na porta e me pedir para parar de falar. Outro ponto no mínimo bizarro é que estes mesmos inspetores da residência possuem chaves de todos os quartos e inspecionam os quartos para verificar se estão limpos ou arrumados. Na semana das minhas provas finais, em que apenas estudei e o quarto virou uma bagunça, um dia me deparo com um bilhete deixado em meu quarto onde estava escrito “vous devez netoyer votre chambre” (você deve limpar seu quarto). A Internet na residênia é também estritamente controlada, sites de compartilhamento de arquivos, torrent, p2p e sites de conteúdo erótico são todos bloqueados.

Fico imaginando se isso ocorre apenas nessa residência, que talvez seja administrada por algum fascista paranóico, ou se este tipo de prática é também comum em outras residências universitárias. Ao me deparar com essas condições, em que a privacidade é anulada em detrimento de um “bem maior social”, não me impressiona terem sido franceses, Foucault e Deleuze, dois dos filósofos que mais criticaram o surgimento de uma sociedade disciplinar e de uma sociedade de controle.

Manifestantes imigrantes
Estas questões nos aproximam também do que pode ser considerado o principal problema social que atinge atualmente toda a França, incluindo Saint-Étienne – o problema da imigração, principalmente de países árabes. O estado francês tem sido acusado de políticas duras e por vezes fascistas contra imigrantes, como colocá-los dentro de trailers e os despejarem para fora do país. Foi polêmica também a proibição do uso da burca que deixa apenas os olhos das mulheres à mostra. Eventualmente observo em Saint-Étienne passeatas de movimentos de apoio aos imigrantes, pedindo mais justiça e denunciando casos deste tipo.

Em último lugar, e não menos importante a se colocar, o que realmente pesa por aqui para mim é a solidão e por vezes a falta de comunicação (não tenho oportunidade de falar em português com frequência). Ter deixado os amigos e a família e partir para um lugar com uma língua e cultura diferentes é um grande desafio. Mas encaro com força e determinação, pois como muitos dizem, aquilo que não nos mata nos faz mais fortes. Minha amada também está a caminho, o que me tranquiliza e me prepara para uma lua de mel francesa!

Uma tentativa de recomeço

Faz muito tempo que não escrevo por aqui. Acho que esses últimos meses têm sido difíceis para que eu conseguisse tirar um tempo para isso. Analisando melhor, a questão não se trata exatamente de tempo, mas de energia, uma vez que a jornada de trabalho dupla que acabei por aceitar esse ano me tirou boa parte da energia disponível. Assim, minha produtividade enquanto indivíduo se resumiu basicamente a escrever códigos de computador para os meus patrões. A partir dessa situação de 12 horas de trabalho por dia, pela primeira vez senti na prática o papel amortecedor que a televisão possui em nossa sociedade. Chegar em casa depois de um dia de trabalho e não conseguir fazer mais nada além de ficar sentado em frente a uma tela. Bem vindo ao mundo real.

Por algum motivo que não posso explicar exatamente, depois de ter terminado no ano passado minha graduação em ciência da computação, resolvi continuar meus estudos fora do país. Talvez fosse uma necessidade de respirar ares diferentes, ver a paisagem de um ponto de vista que não fosse o ar industrial de Joinville. Encontrei então um curso de mestrado em Saint Etienne-França que se encaixava perfeitamente nos meus interesses de pesquisa, na área de cores e visão computacional. Infelizmente não consegui nenhuma bolsa até o momento, o que me levou à decisão de trabalhar em jornada dupla para juntar dinheiro e assim me sustentar durante meus estudos.

As experiências que tive com o mercado de trabalho foram a confirmação de que eu iria seguir uma carreira acadêmica. O mercado de trabalho, como o conheci, respira sem pudor as contradições do capitalismo e apenas reproduz essa ordem, onde pessoas são números e você precisa escolher entre ser o explorador ou o explorado. Não que a academia não tenha seus problemas (no meu ponto de vista crítico ao autoritarismo e a burocracia), mas me parece que as possibilidades são mais interessantes em um ambiente acadêmico onde a produção e a pesquisa não estejam totalmente voltadas ao lucro. Claro que essa decisão de seguir carreira acadêmica foi também influenciada pelo meu interesse por ciência, filosofia e arte, principalmente sob um horizonte de possível mistura desses interesses, como temos feito com o grupo MuSA.

Acho que vale comentar que a experiência de partir é um tanto confusa. O que vai, o que fica? Serei a mesma pessoa em outro lugar? Seria covardia deixar sua cidade em busca de outro lugar em vez de ficar e tornar sua cidade um lugar melhor?

Mas olhando por outro lado, tenho impressão de que essa não é a primeira vez que estou partindo. Mesmo vivendo em um mesmo lugar, estamos sempre chegando e partindo, conhecendo novos territórios, pessoas, amores e idéias, para em seguida nos despedirmos e reiniciarmos nossa viagem.

Violência Policial na Udesc

Ao longo do mês de maio ocorreram quase todos os dias manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus em Florianópolis, movimentando milhares de pessoas contra a indústria do transporte coletivo. No dia 31 de Maio, policiais invadiram o Campus da Udesc e agrediram estudantes com gás de pimenta, cacetetes e choques elétricos. Tratava-se de uma manifestação pacífica de 150 estudantes e populares contra o aumento das tarifas de transporte coletivo em frente ao portão da instituição de ensino. Durante a invasão policial estudantes que estavam nas dependências do campus universitário foram agredidos e 5 pessoas foram presas.

Em uma entrevista concedida após o violento espetáculo, o Tenente Coronel Newton Ramlow (responsável pela ação policial), afirmou que "a ação foi um tapinha na bunda no movimento, como que um pai dá em um filho para que ele se organize e não repita o vandalismo da ultima quinta onde vidros do banco Santander e BESC foram quebrados" [1]. A partir desta afirmação, faço algumas reflexões sobre o papel da polícia em uma sociedade falsamente democrática, que em última instância parece buscar o controle por meio de metamorfoses constantes. Ao realizarmos bem nosso papel de consumidores, exercendo a liberdade, a igualdade e a fraternidade através do consumo, a sociedade nos parece mansa e nos garante até mesmo uma liberdade de expressão ilusória. Mas em alguns momentos, principalmente por meio da ação policial, há uma metamorfose para a violência, que traz a possibilidade de se desmascarar a ilusão de que existe liberdade de expressão [2]. O poder não pode ser encarado como o estado ou a corporação, mas como
uma entidade híbrida alimentada por uma defesa recíproca de interesses entre
ambas as instituições, com o único compromisso de garantir sua própria
sobrevivência.

A afirmação por parte do tenente de que a polícia estava agindo como um pai protetor, mais do que uma justificativa sem sentido para desmobilizar os manifestantes através de violenta repressão, nos leva diretamente à noção de biopoder [4]. O poder que assume a posição de controlar a vida em seus aspectos mais básicos através de toques de recolher, medidas corretivas, ou como o tenente mesmo diz, "tapas na bunda do movimento". Se a família enquanto instituição fracassa em "educar" suas proles segundo os valores da moral e da obediência, e os tapas que os pais dão nos filhos não são o suficiente, o estado se presta à função de realizar esta tarefa.

Em contato com Y. , um amigo de Florianópolis que participou das manifestações, ele me garantiu que em nenhum momento o movimento tomou a postura de quebrar os vidros dos bancos, tendo sido este um caso isolado, muito provavelmente de pessoas infiltradas [3].

Como estudante (formando) da Udesc em Joinville, quero expressar meu repúdio pelo ocorrido, e relatar que eu e mais alguns amigos fomos procurar a imprensa do Centro de Ciências Tecnológicas da Udesc Joinville e o Danma (Diretório Acadêmico) para que se manifestassem contra o absurdo que foi a invasão e prestassem solidariedade. Infelizmente a imprensa não realizou nenhuma publicação sobre o assunto, mesmo com nosso pedido. Os integrantes da chapa atual do Danma também não se demonstraram interessados, e alguns deles chegaram inclusive a defender a ação policial. Tivemos que conversar com a Dani, presidenta do DCE da Univille, para participar da reunião do Danma e relatar sua participação em uma das manifestações em Florianópolis, dando uma ideia diferente daquela que é passada pelos mentores intelectuais (dentre eles Luiz Carlos Prates) dos estudantes de engenharia da Udesc.

Desta forma, repudio aqui não só a atitude dos policiais que invadiram a Udesc em Florianópolis, mas também a atitude socialmente deslocada da chapa atual do Danma e da imprensa da Udesc Joinville. Isto caracteriza uma triste falta de solidariedade e total desconexão entre os diferentes centros/campus da Udesc.

[1] Relato do evento de invasão da UDESC – disponível em http://www.fltcfloripa.libertar.org/?p=220#more-220

[2] À respeito da violência policial e pseudo-democracia, Howard Zinn nos diz "Liberdade de expressão? Tente e a polícia estará lá com seus cavalos, seus cassetetes, suas armas, para parar você."

[3] Mesmo que a postura de destruir propriedades tivesse sido adotada pelo movimento, tenho uma tendência em acreditar que é impossível cometer violência contra objetos: a violência é um ato sempre cometido contra pessoas, através de agressões físicas ou psicológicas. Quando símbolos da sociedade do lucro como os bancos são quebrados, o que está em jogo são valores que sustentam a sociedade e o poder econômico. E inevitavelmente haverá uma reação verdadeiramente violenta por parte dos mecanismos de defesa desta sociedade, através da força policial. Por exemplo, nos protestos contra o G8 ocorridos em 1999 em Gênova, quando carros foram queimados e redes de fast food foram destruídas, a polícia reagiu com verdadeira violência, assassinando o manifestante italiano Carlo Giuliani.

[4] Biopoder é um conceito criado por Michel Foucault para se referir ao poder exercendo controle diretamente sobre o corpo e a vida humana, incluindo processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. A noção de biopoder relacionada à atuação do estado parece ainda bastante atual e pode ser relacionada também a casos como a farsa da gripe H1N1, como foi feito neste artigo.

Tom Zé e Mutantes em 1969

Tenho tido pouco tempo pra escrever por aqui, pois meu tempo tem sido dividido com dificuldade entre escrever a monografia de TCC, participar de projetos de Software/Hardware Livre e gravar um disco com a banda Lugar Nenhum no nosso estúdio. Temos o objetivo de documentar na Internet todo o processo de gravação quando esta for finalizada, com a intenção de colaborar com outras bandas que desejam aprender sobre métodos artesanais de gravação analógica.

Falando em música, seguem dois vídeos de 1969, do Tom Zé e Mutantes tocando no programa Jovem Urgente, que era exibido pela TV Cultura. O psiquiatra Paulo Gaudêncio, apresentador do programa, aborda temas como sexualidade, mobilidade e poluição urbana com grande maturidade, além de que, mesmo gravadas há 40 anos, suas palavras de preocupação e reivindicação ainda podem ser consideradas atuais. As músicas tocadas pelos "tropicalistas" complementam o caldo de idéias..

 

 

 

 

A Peste e o Toque de Recolher em Joinville

Como Kafka e Sartre, Albert Camus nos apresenta o ser humano face ao absurdo da existência. Quando tive contato com o livro de sua autoria "A Peste", a primeira impressão que tive, é que Oran, a cidade onde a história se passa, guarda muitas semelhanças com Joinville. O trecho abaixo dá uma idéia:

  Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entendiam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema, e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados a noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro.

O livro ilustra a reação dos habitantes de Oran, ao depararem-se com uma peste contagiosa. Naturalmente, a maiAlbert Camusor parte dos cidadãos demorou algumas semanas para admitir a existência da peste. Isso pois lhes parecia absurdo que uma cidade tão exemplar nos quesitos da moral e dos bons costumes, onde todos trabalham com tanto esforço, poderia ser atingida por um flagelo tão horrível.

Com o decorrer do tempo, o médico Bernard Rieux, junto com outros voluntários, iniciam uma luta contra a peste, mesmo desconhecendo tanto a origem do mal, bem como se será realmente possível vencê-lo. Uma história profunda e existencialista, refletindo sobre diversos aspectos da condição humana, onde a cidade de Oran pode ser vista como uma espécie de microcosmo que representa simbolicamente as situações gerais do macrocosmo.

Bem, Joinville não está sendo atingida por nenhuma peste bubônica, mas mesmo assim, um grupo de vereadores insiste em implantar um toque de recolher para menores de 18 anos, a partir das 23h. Será isso nostalgia de um tempo onde as noites eram marcadas por um vazio imenso, acompanhado apenas de militares armados controlando a ordem pública?

Alegam que é uma medida necessária para controlar a criminalidade infantil. Uma reconstrução sintática e semântica mais adequada para mim seria dizer que essa é uma atitude infantil de vereadores criminosos. Pois para mim impedir jovens de transitar pelas ruas representa um crime contra o direito fundamental de ir e vir.

Lembro de uma vez quando tinha 16 ou 17 anos, que subi o morro do mirante de bicicleta a noite com alguns amigos, para observar de lá do alto do Morro do Boa Vista a beleza das luzes da cidade na madrugada. Depois pedalamos mais um pouco pelas ruas desertas, e voltamos para a casa quando o dia estava amanhecendo. Essa experiência nunca teria sido possível, se um policial nos parasse e levasse-nos até em casa, alegando cumprir ordens municipais.

É necessário reconhecer que há toda uma problemática de uso de crack por menores nas ruas (bem como por maiores), mas que é um problema sério e complexo, que geralmente está associado a frustrações psicológicas. Seria mais interessante um plano municipal de assistência psicológica para acompanhar essas pessoas que vivem nas ruas, para entender porquê essas crianças foram obrigadas a tomar essa vida (provavelmente não é uma escolha voluntária). A prática do toque de recolher seria o típico tapar o sol com a peneira, seria obrigar essas pessoas mais prejudicadas a usarem as drogas dentro de casas abandonadas e fingir que o problema não existe. Resumindo, é uma prática de higienização social, o "varrer a sujeira para de baixo do tapete".

Carnaval Revolução 2008

Desde 2003 acontece
todo ano em Belo Horizonte o Carnaval Revolução. Desde
2004 que tento participar mas nunca tenho dinheiro nessa época
do ano. Nesse ano não foi diferente, mas consegui algum
dinheiro emprestado e participei ao menos dessa vez, do que foi a
última edição do evento. A característica
mais interessante do Carnaval Revolução é a
multiplicidade da programação. Temas como
VEGetariANISMO, Software Livre, utilização de
Bicicletas, Hortas Urbanas, Fitoterapia, Somaiê, Anarquismo
Social, Primitivismo e principalmente cultura Faça-você-mesmo
estavam todos ali ao mesmo tempo, numa salada completada por
apresentações musicais. Fiquei um pouco decepcionado
com o cancelamento das atividads do Cacique Marcelo, que iria falar
sobre resistência e espiritualidade indígena, mas mesmo
assim, não estragou o evento. Uma coisa que chamou a atenção nos almoços foi o sistemecológico de lavar louças, conhecido como O Sistema das Três Bacias, hehehe. Aí vão algumas das minhas impressões
das atividades que participei no Carnaval:

Locomoção
urbana: a bicicleta na cidade

Nesse debate rolaram
trocas de experiências sobre a utilização da
bicicleta como meio de transporte ecológico. Como as cidades
modernas foram desenhadas para os carros, a situação
dos ciclistas parece ser a mesma na maior parte das cidades
brasileiras: quase não há ciclovias, e quando existem,
não levam a lugar algum ou apenas contornam parques. Além
disso, os ciclistas são geralmente vistos como o inimigo
número 2 dos motoristas, perdendo apenas para os motoqueiros.
Nesse sentido as bicicletadas têm um papel importante, pois só
quando estão em um grupo grande os ciclistas são
percebidos como trânsito. Mais sobre a bicicletada.

Primitivismo:

Essa foi a primeira e
única palestra do evento que participei feita por John Zerzan,
um pensador estadunidense que foi convidado para participar do
Carnaval.

Parece que o
primitivismo é algo que surge paralelamente à
manifestações como o terrorismo poético e
caoismo, ou guerrilhas psicológicas a la Wu Ming, Luther
Blisset e Discordianismo. Diria ainda que são descentendes dos
situacionistas, grupos e pessoas decepcionadas com os consecutivos
fracassos da esquerda tradicional, que parecem um tanto confusos e
buscam formas “esquisitas” de pensar e desafiar o mundo frio que
criamos.

Zerzan falou algumas
coisas interessantes sobre os rumos da tecnlogia e da civilização,
que se assemelharam ao que ele falou no documentário Surplus.
Criticou também a divisão e especialização
do trabalho, com um discurso que se aproxima de Bob Black. Até
aí ele fez uma fusão do que já disseram alguns
pensadores, como Ivan Ilitch, no texto Energia e Equidade, já
indicou que quanto maior o nível tecnológico, maior a
quantidade de energia necessária, e quanto mais energia não
metabólica está envolvida nos processos industriais,
menos igualdade e maior divisão de classes existirá. O
que desorientou o pessoal, além da tradução
problemática das falas do gringo, foi o fato da proposta de
Zerzan ser bastante atípica: acabar com toda tecnologia e
voltar a viver de forma primitiva, para assim causar o mínimo
de danos ao planeta. Do ponto de vista teórico até faz
sentido, num mundo primitivo sem tecnologias avançadas não
existem classes, uma vez que, como Marx já afirmou, a divisão
de classes é garantida pela existência de proprietários
das tecnologias e meios de produção. Mas do ponto de
vista prático, é muito difícil imaginar
esquecermos tudo e voltarmos às cavernas. Individualmente até
pode funcionar, mas não vai mudar nada, o resto do mundo vai
continuar destruindo tudo. Infelizmente Zerzan não respondeu
direito às diversas perguntas que as pessoas fizeram, e nem
explicou direito o conceito de tecnologia dele. Pessoalmente, acho
que o problema do primitivismo é demonizar demais o aspecto
tecnológico como culpado pela desgraça da humanidade.
Antes da criação das tecnologias existem interesses
individuais e coletivos que as criaram. Acredito que o interesse de
dominação humana que cria tecnologias de dominação,
e não o contrário. Ademais, não tenho leitura
suficiente no assunto pra formar uma opinião completa e fechada, pretendo
ainda ler os livros de Daniel Quinn, que muitos já me
recomendaram. O sítio erva daninha tem muita informação sobre o assunto.

Hortas Urbanas:

Essa atividade foi
conduzida pelo pessoal do grupo Germinal, que são algumas
pessoas da FARJ (Federação Anarquista do Rio de
Janeiro) envolvidas com agroecologia. Foram discutidas técnicas
de como estar cultivando em meio ao espaço urbano. Rolaram
discussões sobre como plantar os alimentos que comemos traz
autonomia às pessoas, além de ser a opção
mais saudável. O mais recomendado é utilizar sempre
sementes orgânicas (como as da marca Isla Sementes), livres de
qualquer tipo de agrotóxico. O mais interessante nesse sentido
são as hortas comunitárias, a realização
de multirões para transformar terrenos baldios em lugares de
vivência comunitária, cultivando alimentos. Mais sobre a FARJ nessa entrevista.

Somaiê:

A somaiê é
descrita como uma coisa vagabunda. É uma ramificação
da somaterapia, que foi criada por Roberto Freire, inspirada na
terapia corporal Reichiana, na capoeira angola, e na prática
anti-autoritária do anarquismo. Segundo Ruy Takeguma, criador da somaiê, o que diferencia a soma da somaiê é a inclusão da prática da biologia do conhecer, do chileno Humberto Maturana e o fato da soma ter se aproximado das universidades. No último dia do
Carnaval participei de um debate seguido de uma “sessão”
de somaiê. As sessões de somaiê são
compostas de exercícios com o intuito de desbloquear as
“couraças” ou neuroses criadas pelo autoritarismo e as
injustiças sociais. No debate, Ruy Takeguma fez uma crítica
à FARJ, com a justificativa de estar se defendendo das
críticas que a FARJ faz à somaiê. Dicotomias são
criadas em todos os lugares para separar os certos dos errados, os
vilões dos mocinhos, os verdadeiros revolucionários dos
falsos revolucionários, o corpo da mente, etc. Milênios
de anos seguindo a tática do “dividir e conquistar” e
praticamente não conseguimos pensar de outra forma.. A
dicotomia em moda no anarquismo é o “social VS estilo de
vida”. A maioria dos ativistas e militantes, condena práticas
como a da somaiê por focar na libertação do corpo
e da mente do indíviduo e não no coletivo. Assim como
gente como o Ruy da somaiê critica os ativistas e movimentos
sociais por tentarem salvar quem não quer salvação
e não olharem para si próprios. É uma questão
complicada, acho que o ideal é integrar práticas
libertárias tanto individual quanto coletivamente, pois não
consigo visualizar a raiz do problema como apenas no indíviduo
ou apenas no coletivo. 

Pra entender melhor a soma e a somaiê, é interessante assistir o documentário "Soma, an anarchist therapy" feito por Nick  Cooper. O trailer pode ser assistido aqui.

Fausto, de Fernando Pessoa

Beber a vida num trago, e nesse trago

Todas as sensações que a vida dá

Em todas as suas formas […]

É com essa frase que se inicia a
peça de teatro que assisti hoje, baseada no texto "Primeiro Fausto" de
Fernando Pessoa, que por sua vez, é baseado no mito original contado
por Goethe. A imutável condição humana, a incapacidade de compreensão
da realidade ou verdade final, é o tema exposto nesse monólogo. Seria
fácil se a vida pudesse ser compreendida num trago, como Fausto almeja
no início da peça.

Porém, parece impossível compreender a vida,
restando apenas vivê-la. Fausto, não se contenta com isso, e vai
afundando cada vez mais em seus devaneios existenciais. Perambulando de
um lado para o outro em cima de um tabuleiro de xadrez até, em última
instância, encontrar-se consigo mesmo. Segurando um espelho, e olhando
a si próprio, questiona o paradoxo fundamental da existência: será o
momento da morte a única forma de explicar a vida? Ou será que a morte
simplesmente nos levará a outras formas de vida, também sem explicação,
e a falta de sentido seja a verdade universal? 

O lirismo
utilizado na peça (foram utilizados os versos originais de Fernando
Pessoa) pode torná-la um pouco mais complexa para a compreensão
imediata, mas traz uma beleza sem igual ao/à expectador/a. Estamos
acostumados com o imediatismo de frases diretas, ou imagens prontas nas
telas de cinema hollywoodianas, que estão matando nossa percepção
crítica e criativa.

Por fim, os efeitos sonoros e visuais em um
telão deram um ar moderno ao mito, que continua sendo o problema
central da filosofia, e por isso dificilmente deixará de parecer atual,
mesmo com o personagem Fausto vestindo roupas típicas do século XVII e
XIX.

Recomendo fortemente que assistam à peça, está em exibição todas
as quartas de agosto e setembro, às 20h, na Cidadela Cultural da Antarctica. Parte do texto de Pessoa pode ser lido aqui.

Inclusão Digital e Poesia (não necessariamente nesta ordem)

homem de bonéDesde que comecei a dar aulas de informática básica no bairro Paranaguamirim, conheci várias pessoas interessantes. O projeto está ligado à rede popular de inclusão digital, que tem como objetivo oferecer cursos gratuitos de informática em diversos bairros de Joinville. Sendo assim, acabo conhecendo pessoas simples, cada uma com suas histórias e conhecimentos pra transmitir. Uma das pessoas que mais me chamou a atenção, foi o Seu Carlos. Com 60 anos de idade, já tendo feito de quase tudo na vida, e atualmente fazendo alguns trabalhos como pedreiro e artesão, Carlos resolveu cair fundo na informática. Depois de ter concluído o curso, continuou comparecendo às aulas, me ajudando a ensinar coisas que ele já havia aprendido. Aliás, já fazem mais de 2 meses que ele terminou o curso, e ainda continua indo, me ajudando a desmanchar a figura de professor, que tento não representar. As aulas de informática acabam servindo como laboratório de experiências, onde é possível perceber na prática que todo autoritarismo tem o único objetivo de afastar as pessoas, matar a inteligência e conduzir à ignorância. Tive alguns casos que não soube o que fazer, por exemplo com uma menina, a Daniele, que só faltou destruir os computadores. Em vez de utilizar a minha autoridade como professor, tentei simplesmente falar que ela não precisava assistir à aula se não quisesse, e que o pior castigo que ela poderia receber é de ganhar o diploma do curso sem ter aprendido a utilizar o computador (o que a falta de atenção dela estava conduzindo). Aí ela se tocou um pouco, viu que no fim das contas não estava ali por obrigação, e que continuando a correr pelo laboratório não ia ajudá-la nos aprendizados.

Há uns 8 anos atrás, vasculhando nos livros do meu pai, encontrei um que me chamou a atenção, se chamava: "Liberdade sem medo" , de A. S. Neil. O livro trata de uma escola chamada Summerhill, onde os estudantes só estudam se assim desejarem, nenhuma obrigação, ou submissão. Alguns chegavam a ficar anos apenas brincando, e em algum momento, por alguma razão, começavam a ter interesse sobre química, física, biologia, etc.. Fiquei encantado com o modelo educacional, baseado não nas obrigações, mas na liberdade. Até hoje, quando penso no desejo que tenho de ser professor, é com esse modelo que sonho.

Só pra terminar, voltando ao Seu Carlos. No intervalo das aulas, ele levou um caderno velho, e passou alguns de seus poemas para o computador. Agora, você e o mundo inteiro terá o privilégio de lê-los, publicados na rede mundial de computadores. Visite aqui a página do Carlos. Pretendo com o tempo publicar outros textos de pessoas que fazem o curso =)

De volta aos ruídos

Depois de um bom tempo parado, sem tocar com nenhuma banda, já até
havia me esquecido do poder que essa coisinha chamada música tem, a
energia que ela dá à vida. Tivemos o segundo ensaio hoje com uma banda
nova ( eu – guitarra, Bruno – baixo e Gustavo – bateria). Já gravamos a
primeira música que estamos ensaiando, com a câmera digital do Gustavo, mas tem
uma parte que está quase impossível de acertarmos. (o som gravado pode
ser baixado aqui) Quem sabe daqui a alguns meses não estamos tocando em algum canto de Joinville?

E
além disso, no domingo (12/08) iremos tocar com o "eu contra o mundo"
no "Salada show",  com as bandas Old Machine, Sylverdale e Posex, às
16h no Bar Funil. Preparamos mais umas demos pra levar ao show
(provavelmente foram as últimas feitas).  Sobre o futuro do "ecom", não
sei como vai ser. Temos uma música nova "redondinha", seria
interessante ensaiar mais umas 3 para lançar mais algum material. Mas
com o Leo morando em Floripa, a coisa fica bem complicada. Por
enquanto, vamos deixar as coisas acontecerem. "Just floating by the stream".