O absurdo e a revolta em Albert Camus

Deus está morto, disse Nietzsche. Ele havia suas razões para fazer tal declaração.
O pensamento científico tratou de arrancar pela raiz a pesada árvore da teologia, espantou os fantasmas da metafísica e declarou o império dos sentidos. Observação, análise, experimento. Com Galileu não somos mais o centro do universo, com Darwin não somos mais que um animal como tantos outros, um amontoado de células que se ajustam por um longo processo de evolução e adaptação. Em suma: já não precisamos recorrer aos deuses, temos agora uma narrativa perfeitamente natural e podemos verificá-la com nossos sentidos.

A morte de Deus não nos leva apenas a uma crise narrativa, em que o mito transcendental perde seu protagonismo, ela nos apresenta também uma violenta crise de valores. Se não há mais deuses, quem nos indicará a diferença entre o bem o mal? De um lado, a possibilidade de reescrever a história, de criar valores que afirmem todo o potencial humano. Mas o risco aqui é iminente: o aparecimento do niilismo como ausência de valores e de sentido, o reino do absurdo. A história do século XX nos fornece um trágico panorama de onde esta ausência de valores pode nos levar: campos de concentração, gulags, bombas atômicas; já no seculo XXI, nos perguntamos se encontraremos a auto-aniquilação através de uma catástrofe climática ou bélica.

A partir de uma analogia com o mito grego de Sísifo, Albert Camus considera a condição humana como condenação a uma vida absurda:

“Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança”.

A vida, quando vista como jornada inútil e sem sentido, nos leva a um desfecho trágico: a morte ou o suicídio. É esta perspectiva que encontramos em “O estrangeiro” de Camus: um homem guiado por circunstâncias casuais, unicamente pelo prazer ou desprazer dos sentidos, desprovido de qualquer valor. Matar ou morrer se torna uma questão irrelevante. Camus não foi o único a explorar as facetas de uma vida sem sentido: Em Kafka, o absurdo permeia as relações familiares (Metamorfose), as leis e os tribunais (O processo) e as penitenciárias (Na Colônia Penal). Em Beckett (Esperando Godot), o absurdo está na inútil espera por alguém que nunca chega. Com George Orwell (1984), o absurdo totalitário é capaz de desfigurar os eventos históricos, a linguagem e a matemática: 2+2=5. A particularidade em Camus foi de ter-nos deixado dois belos ensaios onde ele desenvolve uma filosofia crítica de sua obra literária, em “O Mito de Sísifo” e “O homem revoltado”.

Se a saída existêncialista em Sartre é de responsabilizarmo-nos pela criação de nossos próprios valores, em Camus encontramos um principio primordial como resposta ao absurdo: a revolta. Resta então revoltarmo-nos contra nossa condenação, criando significado através de uma arte que reflete e combate a absurda condição da existência. Esta revolta implica na rejeição do esvaziamento de todos os valores. Se o niilismo contemporâneo encontra espaço na desfiguração da condição pós-moderna, onde a ausência de valores passa a ser preenchida pela cínica casualidade dos mercados, a revolta como valor último nos leva a afirmar princípios que nos são tão caros: a conjunção entre liberdade e justiça.

Nota: Sobre Camus, Michel Onfray nos diz: “Ele criticou fortemente o capitalismo, o liberalismo, o mercado como produtor das leis, a desumanização de toda política que, de esquerda ou de direita, não continha a preocupação conjunta da justiça e da liberdade. A justiça sem a liberdade, é a ditadura; a liberdade sem a justiça, é a lei do mais forte: ele queria a liberdade e a justiça”.

Transporte coletivo e gratuidade na França – Parte 2

Na primeira parte deste artigo, tratei do tema da gratuidade no transporte coletivo em Rennes (França), sobretudo a gratuidade social, que é um direito oferecido na cidade. A gratuidade social beneficia uma parte da sociedade (notavelmente a mais prejudicada, com menores salários), mas pode ser vista como medida paliativa, pois não implica necessariamente em uma revisão do modelo de transporte como serviço público que garanta o direito à cidade.

Estruturalmente, em Rennes o transporte coletivo funciona por meio de uma concessão entre o grupo municipal STAR e a empresa Keolis, uma parceria público-privado similar ao que ocorre na maior parte das cidades brasileiras, um modelo que é geralmente criticado pelo Movimento Passe Livre, que defende a tarifa zero. É a partir de uma rediscussão do modelo de mobilidade, para que este se insira em uma lógica de inclusão aos serviços urbanos a todos os cidadãos, que movimentos sociais se organizam na luta pela tarifa zero no transporte coletivo.

As cidades francesas com gratuidade no transporte coletivo

Segundo o site Ekopedia, vinte cidades na França operam com transporte coletivo gratuito (dados coletados em 2010). A gratuidade é normalmente aplicada dentro de duas principais motivações, seja a partir da saturação de carros nas vias urbanas, onde o poder público se vê forçado a adotar uma medida para reduzir o caos no trânsito, seja a partir de uma vontade política de garantir o direito aos serviços de mobilidade da cidade.

Um exemplo é a rede de transportes da cidade de Castres, de 85 mil habitantes, que implementou a gratuidade em 2006. Seis meses depois, as primeiras estatísticas confirmaram a eficácia da operação: o número de usuários de ônibus havia crescido em 76%. De forma similar, desde 2001 a cidade de Vitré, de 16 mil habitantes, colocou em prática a gratuidade no transporte coletivo da cidade, que passou por um processo rápido de urbanização que resultou em congestionamentos de trânsito. Segundo o jornal local Ouest-France, em um mês após a aplicação da medida, a utilização de ônibus em Vitré foi duplicada e os congestionamentos diminuíram.

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Mas merece atenção especial a experiência do transporte público gratuito desde 2009 na cidade de Aubagne, por ter sido detalhadamente narrada sob seus aspectos políticos e técnicos no livro Voyageurs sans ticket. Liberté, égalité, gratuité : une expérience sociale à Aubagne (“Passageiros sem bilhetes. Liberdade, Igualdade e Gratuidade: um experimento social em Aubagne”) escrito por Magali Giovannangeli e Jean-Louis Sagot-Duvauroux. Os autores demonstram que o aparente silêncio nos meios de comunicação sobre o tema da gratuidade no transporte coletivo na verdade oculta a incapacidade de pesquisadores e políticos em propor soluções criativas para a mobilidade urbana, que desafiem a lógica dominante que é responsável por cidades saturadas de veículos e transportes coletivos de má qualidade e caros.

No caso de Aubagne, os autores relatam que a gratuidade no transporte público ocasionou um crescente envolvimento da população na política local, desenvolvendo um novo sentido de liberdade que foi capaz de oferecer alternativas às forças do mercado.

Os autores também rebatem de forma consistente à tese de que a gratuidade é impraticável ou ineficiente: a implementação do transporte público gratuito nas 11 linhas de ônibus que servem os 100.000 habitantes da área urbana de Aubagne resultou em um aumento de 142% no número de usuários de ônibus entre 2009 e 2012; uma redução de 10% nas jornadas de carro; uma satisfação do serviço de 99% dos usuários; e uma redução dos gastos públicos por jornada de 3,93 euros para 2 euros – e para alguns o mais importante: tudo isso sem qualquer aumento nos impostos para os habitantes da cidade.

Neste ponto, há de se perguntar: se o transporte público se tornou gratuito em Aubagne, mas os gastos públicos foram reduzidos, quem está pagando a conta? A resposta é simples: na França, em todas as áreas administrativas de mais de 100.000 habitantes, o município cobra uma “taxa de transporte coletivo” das empresas com mais de 9 empregados. No caso de Aubagne, essa taxa é utilizada para financiar o transporte coletivo gratuito, em vez de ser empregada na compra de vale-transporte ou de descontos no transporte dos funcionários, como ocorre em outras cidades na França e também no Brasil. Sendo assim, este modelo de gratuidade não implica no aumento de impostos para o cidadão, ao mesmo tempo que os empresários não se queixam de pagar essa taxa, pois sabem que ela garante que seus funcionários tenham um bom transporte, cheguem pontualmente no trabalho e representa menos congestionamentos na cidade e mais vagas livres nos estacionamentos de empresas.

Além disso, é preciso ter em conta que o valor acumulado com a venda de bilhetes no transporte coletivo via concessão (parceria público-privado) representa menos de um quarto (entre 15% e 25%) da receita total, mas por outro lado o custo direto para manter o sistema de bilhetes é alto. Custo que compreende a produção de bilhetes, a manutenção das máquinas de venda, de câmeras de vigilância e controladores, de pesquisa e desenvolvimento nas tecnologias de informática que são a base do sistema automatizado de tarifas. Com a gratuidade das tarifas, todos estes custos deixam de existir.

Para Bernard Calabuig, membro do escritório administrativo de Aubagne, a gratuidade significa igualdade de direitos ao território urbano:

“Quando ninguém está pagando para se transportar, não há mais a divisão social da cidade, com o centro reservado aos ricos e a periferia reservada aos pobres, há liberdade para se transitar por todo o território e usufruir de todos os espaços urbanos. A implementação da gratuidade em Aubagne modificou as relações sociais e os motoristas de ônibus podem se dedicar à sua atividade principal que é dirigir, e não de conferir bilhetes. Do usuário do transporte é esperado apenas que diga ao entrar no ônibus “Olá”, que seja simpático.“

O modelo de transporte de Aubagne foi uma das inspirações do sistema adotado em Tallinn (Estônia), a primeira capital de um país europeu a implementar a gratuidade. Em Helsinki (Finlândia), o sistema de tarifa zero adotado na vizinha Talinn já é acompanhado com grande interesse e com perspectivas de que esta seja a segunda capital européia a abolir as tarifas de transporte coletivo.

O exemplo relatado em Aubagne transmite uma ideia instigante: a questão essencial não é mais “a tarifa zero é possível?” mas sim “dada a eficiência da medida, porquê a tarifa zero ainda não é globalmente implementada?”

A tabela abaixo demonstra as vinte cidades francesas onde o transporte coletivo é gratuito:

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Movimentos sociais pela tarifa zero

Uma característica peculiar da luta pela gratuidade na França é a ação direta como tática dominante dos movimentos sociais, o que é natural se pensarmos no imaginário historicamente ligado à desobediência civil incitada por vertentes libertárias. Dentro dessa tradição militante, se insere a Rede pela Abolição dos Transportes Pagos (Réseau pour l’abolition des transports payants), um coletivo francês que luta pela gratuidade do transporte coletivo desde 2000, e se identifica pela sigla RATP – um trocadilho com a mesma sigla utilizada pela compania de transportes de Paris RATP (Régie Autonome des Transports Parisiens). Uma das primeiras práticas do RATP foi a organização das chamadas “operações portas abertas”, em que grupos de militantes mantinham as catracas do metrô abertas para que os usuários entrassem na estação sem validar os bilhetes.

Considerando a prática corrente de usuários que não pagam pelo transporte coletivo (os puladores de catracas), seja por simplesmente não ter como pagar ou como forma de boicote contra as tarifas, o coletivo RATP adotou uma prática que já ocorria também entre os habitates de Bruxelas, Estocolmo, Göteborg e Helsinki que se denominam de “free riders” (viajantes sem bilhete), agrupados sob cooperativas com fundos de segurança. O princípio é simples: os associados pagam uma taxa mensal (7 euros no caso da RATP), e continuam a utilizar o transporte sem comprar bilhetes. Quando pegos pelos controladores, a multa aplicada contra eles, que gira em torno de 50 euros, é paga pela cooperativa.

Porém, ações como a da cooperativa que presta solidariedade aos não pagantes não devem ser compreendidas isoladamente, pois separada da questão política de uma luta pela gratuidade, a organização estaria apenas prestando um serviço pago ilícito que é uma alternativa ao transporte oficial, apenas por um preço mais baixo. Para Martial Lepic, voluntário da RATP e da Federação Anarquista Francesa, esses fundos de segurança são entendidos como ferramentas de resistência ao sistema de tarifas combatido, e não como um modelo alternativo ao sistema. Juntamente ao serviço de solidariedade jurídica e financeira para os que são punidos por estarem usando o transporte sem bilhetes, a RATP realiza propaganda política e manifestações a favor da tarifa zero.

Um outro movimento social, o “Coletivo de Rennes pela gratuidade dos transportes” (Collectif Rennais pour la gratuité des transports) iniciou sua luta pela tarifa zero em 2001, como iniciativa do movimento dos desempregados e precarizados em luta. A Aliança Libertária (AL), o grupo local da Confederação Nacional do Trabalho (CNT), a Federação Anarquista e outros grupos sindicais também se associaram ao grupo na luta pela tarifa zero. Uma das ações mais audaciosas realizadas pelo coletivo foi a publicação de uma notícia falsa em cartazes espalhados por Rennes, ao melhor estilo Luther Blisset. Na nota, o sistema de transportes de Rennes STAR estaria divulgando a realização de um dia de viagens gratuitas:

“Hoje, dia 10 de novembro de 2011, a rede STAR, em parceria com a Metropolis Rennes, decidiram experimentar o transporte gratuito na linha de metrô. Preocupados com uma rede cada vez mais adaptada à todo o público, a rede STAR está convencida da utilidade social de permitir à todos e à todas de utilizar o transporte coletivo gratuitamente”.

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Outra prática de ação direta realizada em Rennes foi a impressão de bilhetes falsos para serem usados no transporte coletivo. O coletivo afirma que distribuiu os bilhetes « Zero Euros, Zero fraude » para difundir a ideia de que a gratuidade pode ser alcançada se os usuários do transporte coletivo tomarem consciência de sua força política e de sua capacidade de participação e principalmente se não se limiratem a serem simples clientes ou consumidores do serviço de transporte.

A gratuidade e a cidade capitalista

Sabemos que a questão da tarifa zero é essencialmente política: como demonstrado nos exemplos das cidades francesas, quando esta vontade política existe, a logística do transporte coletivo gratuito é desenvolvida eficientemente, com soluções que se adaptam à realidade local.

Uma pergunta levantada a partir de uma resenha do livro supracitado de Giovannangeli e Sagot-Duvauroux é bastante interessante: a gratuidade no transporte coletivo enfraquece as forças do mercado? Parece que não necessariamente. Apesar de atacar um valor fundamental do capitalismo (o mercado é sempre mais eficiente), os experimentos franceses de gratuidade em geral são realizados dentro de uma economia de mercado. Mesmo gratuito, o transporte em Aubagne continua a ser gerenciado por uma companhia privada, o grupo Veolia. Os autores escrevem que “uma companhia que possui todo o equipamento necessário e o “know-how” para operar os transportes coletivos não pode ser simplesmente substituída de uma hora para outra”. Isso demonstra que a gratuidade pode vir a se tornar realidade mesmo sem uma mudança estrutural na gestão do transporte coletivo. E de fato, é de se esperar que as empresas de transporte busquem uma solução que minimize a mudança das estruturas econômicas.

No Brasil, o Movimento Passe Livre defende a municipalização do transporte coletivo para que a tarifa zero se torne realidade. Essa reivindicação nasce do entendimento de que um serviço como o transporte coletivo deveria ser gerenciado pelo poder público. O transporte municipalizado não teria problemas em manter linhas de ônibus em pleno funcionamento mesmo nas regiões periféricas. No modelo de transporte coletivo privado e pago, estas áreas da cidade são tradicionalmente abandonadas, com poucos horários de ônibus disponíveis pela razão de servir um número menor de passageiros, e consequentemente gerar menos lucro.

Este contraste de diferentes soluções para a implementação da tarifa zero abre um leque de questões a serem refletidas por aqueles interessados em estudar os efeitos e as potencialidades emancipadoras da gratuidade no transporte inserida em uma economia capitalista.

Pois bem, sabe-se que em vias gerais a luta pela tarifa zero tem origem em indivíduos e movimentos sociais que buscam a superação da lógica econômica capitalista. Se mesmo com a conquista da gratuidade, o modelo de transporte ainda beneficia uma classe em detrimento de outra, através de grupos empresariais especializadas em gerir o transporte, temos então apenas uma certeza: a reflexão e a luta continuam. Dentro dessa perspectiva, a gratuidade não pode ser vista como um fim em si mesma, mas como uma causa, conectada à uma rede de lutas que tem como horizonte, como diriam os zapatistas, um contínuo “caminhar perguntando”.

Nota

– Nesse texto o termo tarifa zero é utilizado como sinônimo de gratuidade no transporte coletivo. Não confundir com o projeto tarifazero.org, que na minha concepção utiliza o termo em um sentido mais abrangente que apenas gratuidade.

Referências

Giovannangeli, M. and Sagot-Duvauroux, J.‑L. 2012. Voyageurs sans ticket. Liberté, égalité, gratuité : une expérience sociale à Aubagne, Vauvert: Au Diable Vauvert.

Lepic, M. 2009. Luttes sociales et entraide: l’exemple des mutuelles dans les transports. Réfractions 23 (pdf). Disponível em http://refractions.plusloin.org/IMG/pdf/luttes_20socialzes.pdf

Lepic, M. Services publics et gratuité. Réfractions num. 15 (pdf). Disponível em http://refractions.plusloin.org/IMG/pdf/1505gratuit.pdf

Calabuig, B. Liberté, Égalité, Gratuité – free public transport experience of Aubagne (.doc) Disponível em http://www.tallinn.ee/eng/g10210s64053

Severo F., Moura, J. F. TARIFA ZERO E PEC 90: TRANSPORTE PÚBLICO COMO DIREITO

Ékopédia – Transports en commun gratuits.

Huré M & traduzido por Waine O. Free public transport: from social experiment to political alternative?

Federation Anarchiste Rennes – TRANSPORTS PUBLICS GRATUITS POUR TOU-TE-S : Une possibilité économique, une nécessité sociale, une revendication politique.

Federation Anarchiste Rennes – Transport gratuit : c’est possible !

Helsinki eyes Tallin’s free public transport

Transports gratuits aujourd’hui à Rennes ! Une fausse annonce

Transporte coletivo e gratuidade na França – Parte 1

A luta pela desmercantilização do transporte coletivo no Brasil alcançou uma visibilidade nacional e mesmo internacional em Junho de 2013, com grandes manifestações que balançaram o cenário político do país a partir do aumento da tarifa de transporte em São Paulo. O Movimento Passe Livre, que luta pela gratuidade do transporte coletivo desde 2003, tem demonstrado um discurso político consistente e um compromisso efetivo com a autonomia, o trabalho de base e a organização horizontal.

Para somar voz à essa importante luta, escrevo aqui sobre a situação do transporte coletivo gratuito na França, partindo da experiência que tive em Rennes como beneficiário da gratuidade social no transporte coletivo. Em uma segunda parte deste artigo, também destacarei alguns eventos significativos na luta francesa pela tarifa zero integral.

Gratuidade social no transporte coletivo de Rennes

Terminal central de Rennes
Terminal central de Rennes

Desde 2009, a rede STAR – sistema de transportes de Rennes – passou a oferecer o direito à gratuidade social no transporte coletivo. O benefício funciona assim: qualquer cidadão que tenha uma renda inferior a um limite específico tem direito a usufruir gratuitamente do sistema de transportes (ônibus, metrô e bicicletas públicas) de forma ilimitada, mas por um tempo determinado (1, 3, 6 ou 12 meses) que pode ser renovado. Esta duração serve como medida de controle no caso da renda de uma pessoa ou família ultrapassar o limite neste período, situação que impediria sua renovação. As condições para receber o direito variam de acordo com a renda em função da organização familiar, número de filhos, etc.

No início de 2013, eu e minha companheira fizemos o pedido de cadastro no sistema de gratuidade social de transportes, e depois da avaliação de nosso dossiê, conseguimos este direito por uma duração de três meses, que correspondia ao restante da duração de nosso visto na França.

Pelo ângulo subjetivo, convém fazer uma comparação entre como foi a experiência antes e depois de receber o beneficio de gratuidade social. Com um salário insuficiente para poder arcar com os custos diários do transporte coletivo, costumávamos pegar o ônibus e o metrô sem pagar, como muitos franceses também fazem. Isto era feito sem muita dificuldade, já que não existem catracas no transporte coletivo de Rennes – nem nas estações de metrô. O controle é feito esporadicamente por fiscais em algumas linhas. A multa para quem é pego sem validar o ticket é de 40 euros. Sendo assim, vivíamos constantemente preocupados com a possível aparição dos fiscais. As alternativas para não sermos pegos incluíam reutilizar o ticket (com validade de 1 hora) doado por outro usuário na saída do metrô, ou consultar a página do Facebook “Onde estão os fiscais da STAR“, que conta com a colaboração dos usuários “fraudistas” que informam por meio do telefone móvel as linhas em que as fiscalizações ocorrem. Em suma, mesmo quando não pagávamos com dinheiro, havia o custo da inquietação diante do risco de sermos pegos.

Depois de obter a gratuidade, as preocupações e os obstáculos na mobilidade urbana reduziram significativamente. O transporte coletivo gratuito permite o acesso integral à cidade: trabalho, estudo, saúde, lazer sem restrições de alcance – cruzar a cidade se torna uma tarefa mais fácil. Ou seja, este direito interfere diretamente na funcionalidade dos organismos sociais que compõe a cidade. Imediatamente, passamos a utilizar o transporte coletivo várias vezes ao dia, e a cidade nos parecia cada vez menor e mais acessível. Fomos à concertos do outro lado da cidade, que dificilmente íriamos se tivéssemos que pagar pelo bilhete. Passei a ir ao trabalho todos os dias de ônibus, em um percurso de apenas 10 minutos. É provável que o único ponto negativo da experiência tenha sido aposentar definitivamente minha bicicleta durante esse tempo, e sentir falta da única atividade física regular que conseguia manter. Mas é um detalhe insignificante, comparado à quantia economizada mensalmente, que poderia ser aproveitada em uma atividade esportiva e de lazer.

Reflexões sobre a gratuidade social no transporte coletivo

A tarifa do transporte em Rennes custa 1,40 euros e o salário minimo na França é de 1200 euros. Ou seja, o custo da viagem diária de ida e volta no transporte coletivo para um mês de 30 dias corresponde à 7% do salário mínimo. Em Joinville, considerando o preço da passagem de 2,90 reais e o salário mínimo de 678 reais, o custo do transporte diário corresponde a 25,6% do salário mínimo. Nas duas situações (principalmente em Joinville), o custo com o transporte corresponde a um percentual significativo da renda, e a gratuidade deste transporte, tão necessário ao funcionamento das cidades, garante uma importante redução de gastos para aqueles que precisam sobreviver com um salário mínimo.

No Brasil, pouco se fala em gratuidade no transporte coletivo baseada no valor da renda familiar. As alternativas ao modelo atual mais comentadas são o passe livre estudantil, a mensalidade para uso ilimitado do transporte e o vale social para portadores de necessidades especiais, além do já conquistado passe livre para idosos.

É evidente que a gratuidade social no transporte coletivo beneficia os maiores prejudicados na sociedade. Recebe o direito apenas quem possui uma renda mensal inferior, em que o preço da passagem possui um grande peso no orçamento familiar – como apresentado acima nos casos de Rennes e Joinville.

Sendo assim, este direito pode ser visto como uma alternativa inicial interessante para a realidade brasileira, onde a desigualdade social é gritante. O custo para os cofres públicos para implementar a gratuidade social seria menor do que o necessário para a tarifa zero. Um modelo de gratuidade tangível, porém intermediário.

A gratuidade social é, antes de tudo, uma medida que pressupõe a existência de desigualdades sociais, assim como os impostos progressivos. Uma medida paliativa, que combate apenas as consequências de um problema muito maior que não pode ser ignorado: a desigualdade social, decorrente de uma sociedade dividida por um incessante conflito de classes.

Obsolescência Programada: Burroughs tinha razão!

Em um trecho do livro “On the Road”, Jack Kerouac relata uma de suas viagens feitas à New Orleans, para visitar seu velho amigo Willian Burroughs (apelidado de Old Bull Lee no livro). Entre as inúmeras excentricidades de Burroughs, estavam suas declarações de ódio pela burocracia capitalista e o governo dos Estados Unidos, como este seguinte parágrafo [1]:

Quando terminar de arrancar todos esses pregos vou construir uma prateleira que vai durar mil anos! – disse Bull, com cada osso estremecendo de satisfação infantil. – E então, Sal, já percebeu que as prateleiras feitas hoje em dia quebram ou então desabam sob o peso das quinquilharias depois de seis meses de uso? O mesmo aconteceu com as casas, e com as roupas. Esses filhos da puta já inventaram o plástico e com ele poderiam fazer casas que durassem para sempre. E os pneus? Os americanos se matam aos milhões todos os anos com pneus de borracha defeituosa que aquecem nas estradas e estouram. Eles poderiam fabricar pneus que jamais estourassem. Com a pasta de dentes acontece a mesma coisa. Eles inventaram uma espécie de goma que não mostram a ninguém, uma goma que, fosse mascada quando criança, a pessoa não teria uma única cárie até o fim dos seus dias. Com as roupas a história se repete. Eles poderiam fazer roupas que durassem para sempre. Preferem fazer trapos ordinários para que todo mundo continue trabalhando e batendo ponto e se organizando em sindicatos imbecis e se aborrecendo enquanto a grande safadeza prossegue em Washington e Moscou – Ergueu sua grande peça de madeira podre. – Você não acha que dará uma esplêndida prateleira?

No contexto em que a narrativa se desenrola, onde Kerouac descreve a rotina alucinada de um Burroughs imerso no uso de anfetaminas, há grandes chances que o leitor interprete os fatos expressados no trecho acima como uma paranóia conspiratória de um velho delirante. Pois bem, o documentário “A obsolescencia programada” nos mostra que Burroughs estava assustadoramente certo (ao menos no sentido metafórico). O filme espanhol revela com detalhes uma das faces mais curiosas da produção na economia capitalista, a chamada obsolescencia programada – a necessidade que o mercado possui de vender produtos efêmeros, de curta vida-útil, para que as pessoas logo troquem os produtos “velhos” por novos e o ciclo incessante do consumo continue em seu ritmo frenético.

É fato que muitas pessoas tenham pelo menos uma leve impressão de que boa parte dos produtos estão cada vez mais frágeis, ou como dizem os mais velhos: as coisas não são mais fabricadas como antigamente. O que não se imagina é que a maioria dos produtos são desenvolvidos metodicamente para que durem pouco, sendo esta uma das características mais importantes de seu processo industrial – muitas vezes os produtos passam por testes que assegurem que sua vida útil seja menor que um prazo máximo estabelecido. Temos então o cenário surreal em que engenheiros estudam por anos a fio em unversidades, para que depois de formados utilizem seu conhecimento técnico para diminuir ao máximo a vida útil dos produtos eletrônicos por eles projetados.

Um caso notável são as impressoras de jato de tinta: aqueles que já tiveram um modelo como as clássicas “HP Deskjet” devem saber como elas costumam parar de funcionar repentinamente. Ao levarmos a impressora para consertar em uma assistência técnica, o aviso é sempre o mesmo: “vale mais a pena comprar uma nova que consertar”. O que os fabricantes não nos contam, é que há um circuito contador na impressora, uma EEPROM com a função de “auto-destruir” o equipamento depois de um número programado de impressões. E assim a história da industrialização capitalista evoluiu. Lâmpadas, tecidos, aparelhos eletrônicos em geral, todos projetados para durar pouco e dar continuidade ao ciclo do consumo. O resultado: montanhas de lixo eletrônico e industrial despejadas em países africanos (tratados como o lixo do mundo), crianças que passam seus dias brincando com resíduos de cobre, mercúrio e silício. Recomendo a todos que assistam o documentário e tirem suas próprias conclusões:

O que me parece ser uma das principais estratégias da obsolescencia programada nos dias atuais são as baterias eletrônicas, normalmente baseadas em Lithium-Ion. A companhia Apple, por exemplo, foi levada ao tribunal nos Estados Unidos por fabricar Ipods com baterias que tinham vida-útil curta e por recusarem-se a vender baterias novas avulsas, obrigando o consumidor a comprar um produto novo [2]. A situação é similar em relação aos notebooks, sabemos que as baterias são as primeiras a se danificarem (com duração média de 300-400 ciclos), e quando tentamos trocá-las, descobrimos que comprar um notebook novo vai sair mais barato que comprar apenas uma nova bateria.

Mesmo os carros elétricos, que aparentemente são um avanço no ponto de vista ecológico por não produzirem poluição decorrente da queima de carbono, estão enfim se popularizando em versões baseadas em baterias elétricas carregáveis, fabricadas para terem uma vida útil bastante limitada quando comparada à capacidade científica de produzirmos baterias de longa duração [3]. Se o petróleo está com os anos contados, as baterias que se danificam em menos de 3 anos parecem ser um substituto à altura para manter o consumidor algemado às companhias, “para que todo mundo continue trabalhando e batendo ponto e se organizando em sindicatos imbecis”, como diria Burroughs.

É notável que a relação entre a economia e a ciência seja bastante sinuosa, onde descobertas que ameaçam interesses comerciais (muitas vezes relacionados à obsolescencia programada) foram censuradas por inúmeras vezes. A energia solar é um exemplo curioso, pois seria razoável que uma civilização supostamente inteligente como a nossa (recebemos um duplo Sapiens em nosso subgênero primata!) seguisse o exemplo da natureza e investisse grande esforço em pesquisas que maximizem a eficiência de geradores e baterias solares. É trágico, mas não há instituições financeiras suficientes apoiando essas pesquisas, pelo provável fato de que a energia solar não garante lucro e não beneficia a prática da obsolescencia programada.

Dito isto, encontro razões para fortalecer ainda mais minha tese básica de que a sociedade do consumo insustentável precisa cessar, simplesmente porquê nosso planeta não possui recursos naturais infinitos e estes não podem ser explorados apenas para que uma elite econômica continue enriquecendo. A principal arma que temos contra essa situação é a informação e o conhecimento – estarmos cientes da barbárie é o primeiro passo para combatê-la. Se a indústria nos impõe um ritmo alucinante de consumo, podemos negá-lo e produzir o contra-consumo criativo – práticas de faça-você-mesmo, o ativismo em movimentos sociais, a revelação de como o jogo se desenrola, a economia solidária, a engenharia reversa de hackers que desprogramam contadores de impressoras e compartilham seus códigos para toda a comunidade.

A boa notícia é que o conhecimento nunca circulou tão rapidamente como na atualidade, e hoje possuímos algumas ferramentas poderosas para nos livrar da obsolescencia programada em nossas vidas. Além do caso citado no documentário de programadores que compartilham códigos que desbloqueiam as impressoras programadas para parar de funcionar, podemos ainda encontrar na internet manuais que nos ensinam a construir nosso próprio gerador hidrelétrico utilizando uma roda de bicicleta e imãs de discos rígidos estragados – com algum conhecimento de eletrônica e com um rio por perto, podemos ter nosso próprio gerador hidrelétrico [4].

E se a indústria do sofware nos obriga a comprar todo ano computadores de última geração para executar o sistema operacional e o software mais recente, encontramos também sistemas GNU/Linux que podem ser executados sem problemas em computadores antigos [5]. De fato, o desenvolvimendo do movimento de software livre [6] nos anos 80 foi um passo importante para que se começasse a repensar a relação entre a tecnologia e economia. Richard Stallman percebeu que a organização econômica de nossa sociedade geralmente atrapalha muito o desenvolvimento de tecnologias avançadas e abertas. Hoje, a influência do movimento de código aberto (open source) se difundiu para fora do campo do software, e temos ideias inovadoras como o open hardware e open design [7].

Se a obsolescencia programada é uma necessidade da economia e do mercado, temos mais uma grande razão para nos rebelarmos contra estes e buscar formas econômicas alternativas. Repito que precisamos superar uma economia que posiciona o lucro antes das pessoas e evidentemente esta não é uma tarefa fácil, mas não deixemos de pensar, refletir, criar e agir para que nossos sonhos se tornem realidade.

Referências

[1] KEROUAC, Jack. On the road. Porto Alegre: L&PM, 2006.
[2] http://www.engadget.com/2005/06/02/apple-agrees-to-settlement-in-ipod-battery-class-action-suit/
[3] http://editorial.autos.msn.com/article.aspx?cp-documentid=1176838
[4] https://www.youtube.com/watch?v=uWa5vC_KwSI
[5] http://www.elciudadano.cl/2012/01/26/47482/linux-contra-la-obsolescencia-programada/
[6] http://www.fsf.org/
[7] http://opendesignnow.org/

O ceticismo frente à Wilhelm Reich

Wilhelm Reich
Wilhelm Reich

Como admirador de uma parcela significativa da obra de Wilhelm Reich, me sinto no dever de expor alguns equívocos do texto de Richard Morrock – Pseudo-Psicoterapia: OVNIS, Cloudbusters, Conspirações e Paranóia na Psicoterapia de Wilhelm Reich – cuja tradução foi publicada recentemente no site Ceticismo Aberto. O artigo carrega consigo inconsistências que iniciam pelo próprio titulo: Pseudo-psico-terapia, o que autor deseja afirmar com este termo? Acreditaria ele na existência de psicoterapias verdadeiras e psicoterapias falsas? Pois bem, sabemos que no meio cético é comum classificar como pseudociência toda teoria que apesar de fazer uso de termos científicos, não possui qualquer validação através do método científico. É simples caracterizar alguma ideia como pseudocientífica, uma vez que temos critérios rígidos para definir o que é a ciência a partir de seu método de experimentação, comprovação e repetição. Mas quanto à psicoterapia, como afirmaremos se ela é verdadeira ou falsa, uma vez que não existe qualquer método procedural de refutação nessa área, seu resultado depende de critérios subjetivos e frequentemente apoia-se em valores metafísicos? É principalmente o sujeito quem irá poder responder se uma terapia funcionou ou não. Podemos apenas recorrer aos relatos e à estatística – com quantos indivíduos a terapia funcionou? Mesmo o efeito placebo – a crença na terapia – pode ser um indicador de sucesso quando estamos tratando de terapias que não se apoiam em valores científicos, desde as ocidentais como a Psicanálise¹, a Gestalt-Terapia e a Bioenergética, até as orientais, como a Acupuntura.

Sigmund Freud
Sigmund Freud

A partir dessa constatação, podemos observar que apesar do artigo ter saído de uma revista de ceticismo, ele não segue o procedimento típico de um bom artigo cético, que busca desqualificar um fato ou uma idéia “pseudocientífica” através de provas científicas. Trata-se na verdade de um artigo que apresenta críticas sem referências, e que ao tentar atacar Reich e os reichianos ao mesmo tempo – há tanta diferença nestes quanto há em relação a Marx e os marxistas – não completa nenhuma das duas tarefas com seriedade.

De início, o que vemos é uma biografia reichiana seguida de uma observação de caráter sociológico sobre uma suposta contradição na “prescrição revolucionária de Reich”, o que me parece um dos pontos mais problemáticos do artigo:

“Apesar de seus seguidores ignorarem o fato, há uma contradição na prescrição de Reich para a sociedade. Se, como Reich argumenta, a repressão sexual é essencial para a sobrevivência da sociedade classista opressora e se, como ele também afirma, a sociedade classista opressora impõe a repressão sexual, então por onde é que se começa a eliminar a opressão? Não pode ser através da psicoterapia, porque a classe dominante não permitiria, nem pode ser feito através da revolução, porque os trabalhadores sexualmente reprimidos não seriam capazes de criar uma sociedade verdadeiramente livre – basta olhar para a Rússia. Dadas as hipóteses de Reich, progresso social significativo é quase impossível. Não deveria ser surpresa, então, que seu grupo mais ativo de adeptos, o Colégio Americano de Orgonomia, já se afastou das idéias originais esquerdistas de seu fundador e apoia uma variedade linha dura de ultra-conservadorismo.”

Buscar a libertação do indivíduo (eliminar as neuroses autoritárias do corpo, da mente e da sexualidade) ao mesmo tempo em que a libertação na coletividade (lutar por uma sociedade igualitária, sem classes), é certamente uma das maiores contribuições de Reich no campo da luta (psico)social, mas para o autor esta é uma contradição sem solução, pois seria necessário se iniciar por algum lugar. Começar por algum lugar é preciso, mas isso não implica na impossibilidade de se trilhar caminhos simultâneos – isto é tão óbvio quanto perceber a possibilidade (e necessidade) de conciliar uma vida pessoal com uma vida pública. O autor acaba caindo então em sua própria armadilha quando lembra do fracasso da revolução russa e o atribui justamente à falta de uma revolução sexual, ou seja, uma transformação que se estendesse ao campo do indivíduo e suas relações íntimas.

Adorno e Marcuse
Adorno e Marcuse

Vale lembrar que a fusão de elementos da psicanálise com elementos do marxismo encontrada em Reich foi levada a cabo por uma infinidade de outros autores do século XX, como Herbert Marcuse, Theodor Adorno e Raoul Vaneigem. Se para Morrock esta junção é uma contradição, Reich não seria o único a insistir nela. É certo que as ambições sociais desses autores não chegaram a se concretizar na realidade, assim como as ambições de Rousseau não se concretizaram com a revolução francesa e nem as de Marx com a revolução russa. Com isso, ao contrário de provar uma contradição em Reich, este ponto do artigo nos diz apenas que a libertação social e a superação do capitalismo são tarefas bastante difíceis (o que não é nenhuma novidade para os antagonistas do capital). E por mais que os relatos indiquem um conservadorismo em muitos reichianos estadunidenses, o autor comete um equívoco ao inferir que os seguidores póstumos de Reich iriam sempre abandonar a política de esquerda pelas contradições políticas de sua proposta de revolução sexual. No Brasil, por exemplo, nos anos setenta surge a somaterapia, unindo elementos da psicoterapia reichiana, com a crítica ao autoritarismo, a defesa do anarquismo e a capoeira de Angola – vista como uma dança de resistência.

Um mérito que reconheço no artigo está em acertar na identificação do que eu costumo caracterizar como o maior problema de Reich: sua insistência em combater o misticismo ao buscar transformar sua versão² da psicanálise em uma ciência, mas ironicamente terminar em uma espécie de jornada mística. Reich, como marxista tinha o materialismo (histórico/dialético) como valor determinante na composição não apenas social mas também psíquica. A descoberta do orgônio pode ser vista então como a resposta encontrada por ele para justificar seus anseios materialistas. O orgônio seria a energia sexual (a mesma “libido” ou “id” de Freud) que Reich alegava a possibilidade de ser medida por aparelhos eletrônicos ou vista a olho nu, constituindo assim seu aspecto material – físico e biológico.

Representação dialética da energia orgônica
Representação de Reich da energia orgônica

Se existe um ponto controverso nas ideias de Reich e que merece especial atenção dos céticos, sem dúvida é o orgônio. Morrock, ao pretensamente escrever um artigo cético, poderia ter dado mais atenção à questão do orgônio, mas preferiu o clichê de explorar a “ficção científica” de um livro não publicado de Reich contendo especulações sobre os UFOs (e escrito em seus anos mais difíceis e paranóicos), ou ainda, de relatar a opinião obviamente muito negativa de uma celibata, Anna Freud, sobre Reich, que era um ativista da revolução sexual. Já que o caráter pseudocientífico do orgônio foi negligenciado pelo artigo de Morrock, vou eu mesmo adotar uma postura cética e explorar brevemente esta interessante questão.

Reich manipulando cloudbuster
Reich manipulando cloudbuster

Segundo James DeMeo, os orgonomistas possuem estatísticas, documentadas em diversos trabalhos acadêmicos, em que aparentemente provam o funcionamento de cloudbusters baseados no orgônio, manipulando o clima e trazendo chuva para desertos. Mas a existência do orgônio continua tão questionável quanto a existência do inconsciente freudiano, ou do inconsciente coletivo de Jung. Por mais que Reich afirmasse ter medido e ter visto o orgônio, descrito por ele como partículas cintilantes de cor azul, se estas medições físicas realmente procedessem, a orgonomia teria se tornado uma bela ciência. Porém, Reich não submeteu nenhum artigo descrevendo seus experimentos e os justificando cientificamente, ainda que curiosamente, achava estar fazendo ciência. É provável que ele soubesse que apesar de todos os seus esforços, não possuía meios teóricos e empíricos suficientes para tornar a orgonomia em uma ciência e esta seria a fonte de sua paranóia – a impossibilidade de seu projeto de vida. Chegou a pedir ajuda a Albert Einstein, em uma reunião realizada entre os dois em 1941, onde apresentou os princípios da orgonomia e espantou o físico da relatividade ao demonstrar o aumento da temperatura causado por um acumulador de orgônio. Einstein pediu que Reich deixasse o acumulador com ele para que fossem feitos mais testes, para depois de alguns dias escrever uma carta informando o encerramento da questão, ao explicar que o aumento de temperatura ocorrera pelo fenômeno de convergência (os movimentos de ar quente e frio entre o plano horizontal da mesa na sala onde se realizavam as medidas) e não pela ação do acumulador. Reich respondera que a convergência não justificaria o fenômeno, alegando que o aumento de temperatura ocorria em diferentes condições. Einstein, por sua vez, não respondeu mais às cartas, apesar dos elogios que Reich fez ao físico em suas cartas:

“Excetuando meus colaboradores franceses e escandinavos, o senhor é o único homem de ciência que encontrei no decorrer dos últimos doze anos que compreendeu a base física de minha teoria biológica, a saber: o desenvolvimento das vesículas de matéria orgânica pela ação da energia que se desprende da matéria.”

Do ponto de vista físico, é interessante que a noção de orgônio irá se encontrar com a já abandonada ideia científica de éter. Por muito tempo os físicos consideraram a existência do éter como o meio desprovido de forma ou matéria necessário para que a onda de luz vibrasse. A ideia foi abandonada quando a teoria da relatividade restrita (em que Einstein apresenta sua equação clássica utilizando a velocidade da luz como constante) desconsiderou a necessidade do éter. Ironicamente, com a relatividade geral (a aplicação da relatividade restrita à gravidade com a descrição matemática da curvatura do espaço-tempo), Einstein viria a trazer o éter de volta à cena, dizendo: “De acordo com a teoria da relatividade geral, um espaço sem éter é impensável”. Mesmo com esta afirmação, o éter deixou de ser um interesse na física, dada a impossibilidade empírica de seu estudo. O éter se configura então como um estranho fantasma que vem e volta, que não pode ser diretamente medido e por isso especular sobre sua existência – assim como no caso do orgônio – seria um trabalho a cargo dos metafísicos, e não dos cientistas.

Albert Einstein
Albert Einstein

Por fim, é importante notar que no último parágrafo do texto de Morrock, este nos dá a entender que toda a obra de Reich deva ser invalidada por conta de suas paranóias nos seus últimos anos de vida, em que já havia sido expulso e perseguido por diversas instituições. Tal atitude é tão suspeita quanto sugerir que deveríamos também invalidar toda a obra filosófica de Nietzsche ou toda a obra matemática de John Nash (cujo a vida foi narrada no filme Uma Mente Brilhante) por terem sido também vítimas de suas vaidosas paranóias.

Notas

¹ – É evidente que a psicanálise, com suas analogias poéticas de fenômenos psíquicos a partir de figuras da mitologia grega (Édipo, Eros ou Thanatos) situa-se em um terreno mais próximo da filosofia do que da ciência. O bom senso nos permite identificar a limitação da ciência (ao menos em seu estado atual) quando estamos tratando da psique ou da subjetividade, por mais que o ceticismo em sua vertente dogmática não admita. Nao seria por acaso que o comportamentalismo buscou tornar a psicologia em uma ciência a partir da negação da existência da mente e da subjetividade.

² – Reich criou sua própria versão da psicanálise ao romper com Freud por volta de 1934, pois discordava do princípio de Thanatos (pulsão de morte) dualizando o inconsciente juntamente ao princípio de Eros (pulsão sexual, de vida). Enquanto o princípio de Eros já havia sido bem documentado na psicanálise sob a figura do “id” – a energia desejante da sexualidade – por meio de seus estudos Freud chegou a conclusão que o inconsciente desejaria também a morte e a destruição através de um princípio oposto, que identificou com Thanatos, o deus grego da morte. Para Reich, isso era inaceitável, pois afirmar uma tendência natural para o desejo da morte, da destruição e da violência significaria a impossibilidade da realização de seus ideais pacíficos e comunistas. Reich preferiu insistir na existência de apenas uma energia desejante de vida, que a chamou de orgônio, sendo o desejo de morte não uma tendência natural, mas a corrupção do orgônio pela sociedade repressora e autoritária – em suma, esta era uma crença na bondade natural humana, o bom selvagem de Rousseau. Ironicamente, em 1956, ano de seu processo levantado pela FDA (Foods and Drugs Administration) Reich iria voltar atrás e concordar com Freud no princípio de Thanatos, ao afirmar que havia detectado a presença de DOR (deadly orgone – orgônio mortal) no polêmico experimento ORANUR, em que teria submetido o orgônio a elementos radioativos e teria descoberto uma energia anti-biológica, de natureza contrária ao orgônio.

Referências

Somaterapia – http://www.somaterapia.com.br/soma.jsp

DADOUN, Roger. Cem flores para Wilhelm Reich. (Neste livro o encontro de Reich e Einstein é descrito detalhadamente)

DEMEO, James. RESPONSE TO RECENT ARTICLES IN SKEPTIC MAGAZINE – http://www.orgonelab.org/skeptic.htm

OLIVEIRA, José Guilherme. História do conceito de Éter – http://www.orgonizando.psc.br/artigos/hst-eter.htm

MARTINS, Roberto. Espaço, tempo e éter na teoria da relatividade – www.revistapesquisa.fapesp.br/pdf/einstein/martins.pdf