A luta pela desmercantilização do transporte coletivo no Brasil alcançou uma visibilidade nacional e mesmo internacional em Junho de 2013, com grandes manifestações que balançaram o cenário político do país a partir do aumento da tarifa de transporte em São Paulo. O Movimento Passe Livre, que luta pela gratuidade do transporte coletivo desde 2003, tem demonstrado um discurso político consistente e um compromisso efetivo com a autonomia, o trabalho de base e a organização horizontal.
Para somar voz à essa importante luta, escrevo aqui sobre a situação do transporte coletivo gratuito na França, partindo da experiência que tive em Rennes como beneficiário da gratuidade social no transporte coletivo. Em uma segunda parte deste artigo, também destacarei alguns eventos significativos na luta francesa pela tarifa zero integral.
Gratuidade social no transporte coletivo de Rennes
Desde 2009, a rede STAR – sistema de transportes de Rennes – passou a oferecer o direito à gratuidade social no transporte coletivo. O benefício funciona assim: qualquer cidadão que tenha uma renda inferior a um limite específico tem direito a usufruir gratuitamente do sistema de transportes (ônibus, metrô e bicicletas públicas) de forma ilimitada, mas por um tempo determinado (1, 3, 6 ou 12 meses) que pode ser renovado. Esta duração serve como medida de controle no caso da renda de uma pessoa ou família ultrapassar o limite neste período, situação que impediria sua renovação. As condições para receber o direito variam de acordo com a renda em função da organização familiar, número de filhos, etc.
No início de 2013, eu e minha companheira fizemos o pedido de cadastro no sistema de gratuidade social de transportes, e depois da avaliação de nosso dossiê, conseguimos este direito por uma duração de três meses, que correspondia ao restante da duração de nosso visto na França.
Pelo ângulo subjetivo, convém fazer uma comparação entre como foi a experiência antes e depois de receber o beneficio de gratuidade social. Com um salário insuficiente para poder arcar com os custos diários do transporte coletivo, costumávamos pegar o ônibus e o metrô sem pagar, como muitos franceses também fazem. Isto era feito sem muita dificuldade, já que não existem catracas no transporte coletivo de Rennes – nem nas estações de metrô. O controle é feito esporadicamente por fiscais em algumas linhas. A multa para quem é pego sem validar o ticket é de 40 euros. Sendo assim, vivíamos constantemente preocupados com a possível aparição dos fiscais. As alternativas para não sermos pegos incluíam reutilizar o ticket (com validade de 1 hora) doado por outro usuário na saída do metrô, ou consultar a página do Facebook “Onde estão os fiscais da STAR“, que conta com a colaboração dos usuários “fraudistas” que informam por meio do telefone móvel as linhas em que as fiscalizações ocorrem. Em suma, mesmo quando não pagávamos com dinheiro, havia o custo da inquietação diante do risco de sermos pegos.
Depois de obter a gratuidade, as preocupações e os obstáculos na mobilidade urbana reduziram significativamente. O transporte coletivo gratuito permite o acesso integral à cidade: trabalho, estudo, saúde, lazer sem restrições de alcance – cruzar a cidade se torna uma tarefa mais fácil. Ou seja, este direito interfere diretamente na funcionalidade dos organismos sociais que compõe a cidade. Imediatamente, passamos a utilizar o transporte coletivo várias vezes ao dia, e a cidade nos parecia cada vez menor e mais acessível. Fomos à concertos do outro lado da cidade, que dificilmente íriamos se tivéssemos que pagar pelo bilhete. Passei a ir ao trabalho todos os dias de ônibus, em um percurso de apenas 10 minutos. É provável que o único ponto negativo da experiência tenha sido aposentar definitivamente minha bicicleta durante esse tempo, e sentir falta da única atividade física regular que conseguia manter. Mas é um detalhe insignificante, comparado à quantia economizada mensalmente, que poderia ser aproveitada em uma atividade esportiva e de lazer.
Reflexões sobre a gratuidade social no transporte coletivo
A tarifa do transporte em Rennes custa 1,40 euros e o salário minimo na França é de 1200 euros. Ou seja, o custo da viagem diária de ida e volta no transporte coletivo para um mês de 30 dias corresponde à 7% do salário mínimo. Em Joinville, considerando o preço da passagem de 2,90 reais e o salário mínimo de 678 reais, o custo do transporte diário corresponde a 25,6% do salário mínimo. Nas duas situações (principalmente em Joinville), o custo com o transporte corresponde a um percentual significativo da renda, e a gratuidade deste transporte, tão necessário ao funcionamento das cidades, garante uma importante redução de gastos para aqueles que precisam sobreviver com um salário mínimo.
No Brasil, pouco se fala em gratuidade no transporte coletivo baseada no valor da renda familiar. As alternativas ao modelo atual mais comentadas são o passe livre estudantil, a mensalidade para uso ilimitado do transporte e o vale social para portadores de necessidades especiais, além do já conquistado passe livre para idosos.
É evidente que a gratuidade social no transporte coletivo beneficia os maiores prejudicados na sociedade. Recebe o direito apenas quem possui uma renda mensal inferior, em que o preço da passagem possui um grande peso no orçamento familiar – como apresentado acima nos casos de Rennes e Joinville.
Sendo assim, este direito pode ser visto como uma alternativa inicial interessante para a realidade brasileira, onde a desigualdade social é gritante. O custo para os cofres públicos para implementar a gratuidade social seria menor do que o necessário para a tarifa zero. Um modelo de gratuidade tangível, porém intermediário.
A gratuidade social é, antes de tudo, uma medida que pressupõe a existência de desigualdades sociais, assim como os impostos progressivos. Uma medida paliativa, que combate apenas as consequências de um problema muito maior que não pode ser ignorado: a desigualdade social, decorrente de uma sociedade dividida por um incessante conflito de classes.