Jack Kerouac e o Dharma da floresta

A floresta lhe faz isso, ela sempre parece familiar, perdida há muitos anos, como o rosto de um parente falecido há muito tempo, como um sonho antigo, como um trecho de uma música esquecida vagando pela água, como todas as eternidades douradas da infância ou da vida adulta e todos os que vivem e que morrem […]

Tradução livre do inglês. Trecho original:

The woods do that to you, they always look familiar, long lost, like the face of a long-dead relative, like an old dream, like a piece of forgotten song drifting across the water, most of all like golden eternities of past childhood or past manhood and all the living and the dying […]

Jack Keroac, Dharma Bums (vagabundos iluminados)

O absurdo e a revolta em Albert Camus

Deus está morto, disse Nietzsche. Ele havia suas razões para fazer tal declaração.
O pensamento científico tratou de arrancar pela raiz a pesada árvore da teologia, espantou os fantasmas da metafísica e declarou o império dos sentidos. Observação, análise, experimento. Com Galileu não somos mais o centro do universo, com Darwin não somos mais que um animal como tantos outros, um amontoado de células que se ajustam por um longo processo de evolução e adaptação. Em suma: já não precisamos recorrer aos deuses, temos agora uma narrativa perfeitamente natural e podemos verificá-la com nossos sentidos.

A morte de Deus não nos leva apenas a uma crise narrativa, em que o mito transcendental perde seu protagonismo, ela nos apresenta também uma violenta crise de valores. Se não há mais deuses, quem nos indicará a diferença entre o bem o mal? De um lado, a possibilidade de reescrever a história, de criar valores que afirmem todo o potencial humano. Mas o risco aqui é iminente: o aparecimento do niilismo como ausência de valores e de sentido, o reino do absurdo. A história do século XX nos fornece um trágico panorama de onde esta ausência de valores pode nos levar: campos de concentração, gulags, bombas atômicas; já no seculo XXI, nos perguntamos se encontraremos a auto-aniquilação através de uma catástrofe climática ou bélica.

A partir de uma analogia com o mito grego de Sísifo, Albert Camus considera a condição humana como condenação a uma vida absurda:

“Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde ela caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança”.

A vida, quando vista como jornada inútil e sem sentido, nos leva a um desfecho trágico: a morte ou o suicídio. É esta perspectiva que encontramos em “O estrangeiro” de Camus: um homem guiado por circunstâncias casuais, unicamente pelo prazer ou desprazer dos sentidos, desprovido de qualquer valor. Matar ou morrer se torna uma questão irrelevante. Camus não foi o único a explorar as facetas de uma vida sem sentido: Em Kafka, o absurdo permeia as relações familiares (Metamorfose), as leis e os tribunais (O processo) e as penitenciárias (Na Colônia Penal). Em Beckett (Esperando Godot), o absurdo está na inútil espera por alguém que nunca chega. Com George Orwell (1984), o absurdo totalitário é capaz de desfigurar os eventos históricos, a linguagem e a matemática: 2+2=5. A particularidade em Camus foi de ter-nos deixado dois belos ensaios onde ele desenvolve uma filosofia crítica de sua obra literária, em “O Mito de Sísifo” e “O homem revoltado”.

Se a saída existêncialista em Sartre é de responsabilizarmo-nos pela criação de nossos próprios valores, em Camus encontramos um principio primordial como resposta ao absurdo: a revolta. Resta então revoltarmo-nos contra nossa condenação, criando significado através de uma arte que reflete e combate a absurda condição da existência. Esta revolta implica na rejeição do esvaziamento de todos os valores. Se o niilismo contemporâneo encontra espaço na desfiguração da condição pós-moderna, onde a ausência de valores passa a ser preenchida pela cínica casualidade dos mercados, a revolta como valor último nos leva a afirmar princípios que nos são tão caros: a conjunção entre liberdade e justiça.

Nota: Sobre Camus, Michel Onfray nos diz: “Ele criticou fortemente o capitalismo, o liberalismo, o mercado como produtor das leis, a desumanização de toda política que, de esquerda ou de direita, não continha a preocupação conjunta da justiça e da liberdade. A justiça sem a liberdade, é a ditadura; a liberdade sem a justiça, é a lei do mais forte: ele queria a liberdade e a justiça”.

A Peste e o Toque de Recolher em Joinville

Como Kafka e Sartre, Albert Camus nos apresenta o ser humano face ao absurdo da existência. Quando tive contato com o livro de sua autoria "A Peste", a primeira impressão que tive, é que Oran, a cidade onde a história se passa, guarda muitas semelhanças com Joinville. O trecho abaixo dá uma idéia:

  Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entendiam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema, e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados a noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro.

O livro ilustra a reação dos habitantes de Oran, ao depararem-se com uma peste contagiosa. Naturalmente, a maiAlbert Camusor parte dos cidadãos demorou algumas semanas para admitir a existência da peste. Isso pois lhes parecia absurdo que uma cidade tão exemplar nos quesitos da moral e dos bons costumes, onde todos trabalham com tanto esforço, poderia ser atingida por um flagelo tão horrível.

Com o decorrer do tempo, o médico Bernard Rieux, junto com outros voluntários, iniciam uma luta contra a peste, mesmo desconhecendo tanto a origem do mal, bem como se será realmente possível vencê-lo. Uma história profunda e existencialista, refletindo sobre diversos aspectos da condição humana, onde a cidade de Oran pode ser vista como uma espécie de microcosmo que representa simbolicamente as situações gerais do macrocosmo.

Bem, Joinville não está sendo atingida por nenhuma peste bubônica, mas mesmo assim, um grupo de vereadores insiste em implantar um toque de recolher para menores de 18 anos, a partir das 23h. Será isso nostalgia de um tempo onde as noites eram marcadas por um vazio imenso, acompanhado apenas de militares armados controlando a ordem pública?

Alegam que é uma medida necessária para controlar a criminalidade infantil. Uma reconstrução sintática e semântica mais adequada para mim seria dizer que essa é uma atitude infantil de vereadores criminosos. Pois para mim impedir jovens de transitar pelas ruas representa um crime contra o direito fundamental de ir e vir.

Lembro de uma vez quando tinha 16 ou 17 anos, que subi o morro do mirante de bicicleta a noite com alguns amigos, para observar de lá do alto do Morro do Boa Vista a beleza das luzes da cidade na madrugada. Depois pedalamos mais um pouco pelas ruas desertas, e voltamos para a casa quando o dia estava amanhecendo. Essa experiência nunca teria sido possível, se um policial nos parasse e levasse-nos até em casa, alegando cumprir ordens municipais.

É necessário reconhecer que há toda uma problemática de uso de crack por menores nas ruas (bem como por maiores), mas que é um problema sério e complexo, que geralmente está associado a frustrações psicológicas. Seria mais interessante um plano municipal de assistência psicológica para acompanhar essas pessoas que vivem nas ruas, para entender porquê essas crianças foram obrigadas a tomar essa vida (provavelmente não é uma escolha voluntária). A prática do toque de recolher seria o típico tapar o sol com a peneira, seria obrigar essas pessoas mais prejudicadas a usarem as drogas dentro de casas abandonadas e fingir que o problema não existe. Resumindo, é uma prática de higienização social, o "varrer a sujeira para de baixo do tapete".